
Monstros nunca morrem.
Quase cinco meses antes de sua apresentação no Festival Coachella 2025, Lady Gaga anunciou sua participação como headliner do evento com a seguinte afirmação: “eu tinha uma visão que nunca consegui realizar por completo no Coachella, por razões fora do nosso controle”.
Antes de ser chamada para a mais nova edição desse incrível espetáculo, Gaga havia substituído a igualmente lendária Beyoncé em 2017, tendo pouco mais de um mês para orquestrar um show de quase duas horas – apressando-se para construir a identidade visual, reunir os dançarinos, ensaiar um setlist recheado de hits e até mesmo apresentando uma canção inédita intitulada “The Cure” (e aproveitando a ambientação para gravar uma das cenas do filme ‘Nasce Uma Estrela’). Porém, percebemos que algo faltava – um elemento de extrema importância que esteve presente em cada um de seus outros shows: perfeição. Gaga, ao longo de sua carreira, nunca falhou em entrega performances avassaladoras (vide “Paparazzi” no VMA 2009, ou o medley de ‘A Noviça Rebelde’ no Oscar 2015). E isso não é motivo para culpá-la, visto que o aprazível resultado mostrou que a organização do evento escolheu o nome certo para substituir nossa Queen B.
Porém, 2025 emergiria como uma reviravolta drástica em sua carreira. Além do lançamento do compilado de originais ‘MAYHEM’, que tornou-se um sucesso imediato de vendas e de crítica, ela se tornou a segunda artista do século XXI a ser escalada como headliner do Coachella depois de Björk – e, agora, ela mostrou tudo o que havia deixado de lado oito anos atrás para não apenas a melhor apresentação de sua carreira, mas um espetáculo seminal que ficará marcado como uma das melhores rendições do evento. Ao longo de quase 120 minutos, toda a identidade visual e memorável de Gaga é condensada em uma épica montagem que reúne incontáveis referências artísticas da maneira mais apoteótica possível.
É difícil encontrar algum artista que se equivale à titânica mente de Gaga nos dias de hoje, principalmente no tocante à genialidade criativa. O show abre com uma fusão entre “Bloody Mary”, faixa de ‘Born This Way’ que ganhou fama após viralizar mundo afora através das redes sociais, e “Abracadabra”, single de ‘MAYHEM’. Dando início ao primeiro ato de um emblemático concerto, Gaga aparece em uma estrutura metálica coberta com um tecido aveludado vermelho-sangue, rodeada por uma arquitetura que se afasta por completo da identidade brutalista do ‘Chromatica Ball’ e que aposta fichas na lendária casa parisiense intitulada Ópera Garnier, emulando o estilo monumental e marmóreo do teatro em uma ressignificação atemporal.
Música após música, é notável com Gaga volta com fúria descomunal, agigantando-se perante uma plateia de nada menos que 250 mil pessoas em um envolvimento mágico e narcótico, nos engolfando em uma jornada pelo caos e por uma carreira testamentária que continua a influenciar diversos artistas, inclusive da nova geração – ora, não é surpresa que nomes como Olivia Rodrigo, Doja Cat, RAYE e Chappell Roan já tenham-na citado como inspiração significativa para imortalizarem-se no cenário fonográfico. Esquadrinhando um jogo de xadrez mortal para performar “Poker Face” enquanto utiliza referências claras à ‘Alice no País das Maravilhas’, ela batalha consigo própria conforme analisa a ascensão e a decadência do constructo da fama; enfrentando a Senhora do Caos em uma batalha pela supremacia de si mesma com “Disease”, ela traz referências pós-apocalípticas em um conglomerado arenoso em pleno palco do evento.
Os momentos ao piano não poderiam estar de fora – e ela encarna uma persona diferente para dar a introdução de “How Bad Do U Want Me”, transfigurando-se para a dupla formada por “Shallow” e “Vanish Into You”; dialogando com os little monsters não apenas presentes no deserto da Califórnia, mas ao redor do mundo, ela promove incursões teatrais que refletem seu apreço claro pela arte-performance, puxando elementos que aprendeu ao lado de Marina Abramović para rendições irretocáveis de “Garden of Eden”, “Perfect Celebrity” e “Scheiße”. E, estendendo-se por quatro atos pensados em uma maximização nunca vista no festival e que demonstra seu olhar calculista para cada um dos detalhes, essa jornada propositalmente caótica transforma-se em uma vivência cinemática.
Um dos aspectos que mais nos chama a atenção, além dos inúmeros comentados nos parágrafos acima, é a fiel relação que Gaga mantém com seu público. Se desde sua estreia no show business a ideia de relação parassocial ganhou uma nova camada, aqui ela materializa esses laços com um convite aos espectadores, presentes ou não, como forma de torná-los membros ativos dessa intrincada engrenagem. Rememorando os dias de glória, que passaram por altos e baixos nos últimos anos, Gaga reitera seu status inalcançável como uma das mais célebres artistas de todos os tempos – sempre fazendo questão de manter a humildade e seu amor pelos fãs.
De fato, não havia pessoa melhor para encabeçar o primeiro dia do Festival Coachella 2025 que Lady Gaga. A cantora e compositora, que alia-se ao poder aplaudível da coreógrafa e diretora artística Parris Goebel, transforma o espetáculo em uma experiência operística, notória e que ultrapassa quaisquer expectativas que tínhamos – entrando para a história do evento como um dos shows mais icônicos de todos os tempos.