Crônica e futebol: uma sintonia afinada e potente

FUTEBOL

Geraldo Mainenti
O jornalista Geraldo Mainenti apresenta a Coleção ‘Crônicas eternas do futebol’, lançamento que reúne textos de grandes nomes do jornalismo esportivo brasileiro, mas também de personalidades que viveram o futebol dentro de campo (Foto: Nando Neves)

Ocupando um lugar entre o jornalismo e a literatura, a crônica conquista leitores por se construir justamente nesse híbrido. No entanto, nesta semana, ao fazer minhas pesquisas para esta coluna, descobri que, quando ela encontra o futebol – universo simbólico, afetivo e popular – surge uma combinação ainda mais potente. Por que essa sintonia tão afinada?

“Os gêneros literários são formas de expressão de um escritor, expõem as características de variados textos, aspectos sociais e culturais. Podemos destacar, por exemplo, as emoções e o romantismo no gênero lírico. As histórias, com começo meio e fim, no narrativo. Os heróis e suas façanhas, no épico. E as tragédias e comédias, no dramático. Ora, todas essas características estão presentes nas crônicas esportivas em geral e na do futebol, paixão popular, em particular. Podemos dizer, em óbvio, mas compreensível exagero, que os cronistas esportivos criaram um multigênero, que abrange todas as características dos demais”, comenta o professor e jornalista Geraldo Mainenti, também coordenador de curadoria da Coleção “Crônicas eternas do futebol”, lançamento que reúne textos de grandes nomes do jornalismo esportivo brasileiro, mas também de personalidades que viveram o futebol dentro de campo.

O primeiro título inaugura o projeto com uma coletânea de crônicas de Mário Filho, irmão de Nelson Rodrigues. A escolha pelo jornalista se justifica: ele, que se tornou eterno ao dar nome ao Maracanã, é apontado como o patrono da crônica esportiva aqui no país. Depois dele virão outros autores do gênero, como João Saldanha, Armando Nogueira, Tostão, Juca Kfouri, José Trajano, Ruy Carlos Ostermann, Mauro Beting, Marcos de Castro, Alberto Helena Jr, Marcelo Barreto e João Máximo.

Marisa Loures – Como nasceu a ideia da coleção “Crônicas eternas do futebol”? Gostaria que você apresentasse esse projeto para os leitores da coluna sala de leitura.

Geraldo Mainenti – Nasceu da vontade de homenagear os mestres da crônica esportiva com os quais trabalhei em grande parte de meus 50 anos (a completar no próximo 1º. de maio) de profissão. Com exceção de Mário Pollo e Mário Filho, os demais foram meus colegas de Redação, diretamente (trabalhando lado a lado) ou indiretamente (escreviam para os veículos em que eu trabalhava). A minha proposta inicial de escrever biografias foi aperfeiçoada pelo editor Sérgio Cohn, que teve a ideia de fazer uma coleção de antologias de cada um deles. Concordamos que os cronistas mais jovens também deveriam fazer parte do projeto, para que, assim, contássemos a história do futebol brasileiro dos dois séculos, o XX e o XXI, e chegássemos assim ao público mais jovem. É uma coleção por assinatura, anual ou mensal (www.cronicasdofutebol.com), feita em parceria com o coletivo de editoras internacionais A Ponte Invisível, que promove a cultura brasileira no exterior. No endereço indicado pelo assinante, é entregue um livro por mês, de autores diferentes. Além de Mário Filho, que é o patrono de nossa crônica esportiva, ao lado do ítalo-brasileiro Thomaz Mazzoni, estão na coleção João Saldanha, Armando Nogueira, Marcos de Castro, João Máximo, Alberto Helena Jr, Ruy Carlos Ostermann, Fernando Calazans, Juca Kfouri, José Trajano, Tostão, Mauro Beting, Marcelo Barreto, Mauro Cézar e Paulo Vinícius Coelho. A eles se juntarão em breve outros cronistas já convidados. O primeiro livro da coleção, com as crônicas selecionadas de Mário Filho, foi lançado no Rio de Janeiro no início de abril. O segundo, com as crônicas de Juca Kfouri, vai ser lançado em São Paulo, em maio. Os mil assinantes iniciais do plano anual receberão um desconto e um livro extra: “Entrevistas eternas do futebol”, que tem depoimentos históricos, feitos entre 1969 e 1993, por Garrincha, Tostão, Afonsinho, Paulo Cézar Caju, Reinaldo, João Saldanha, Zico, Sócrates, Pelé e os líderes da Democracia Corintiana.

– O que torna a escrita de Mário Filho, o autor escolhido para inaugurar a coleção, tão decisiva para a história do futebol no Brasil  e para a literatura?

Mário Filho dá nome ao estádio do Maracanã não é à toa. É o maior nome da crônica esportiva de todos os tempos. Grande incentivador do esporte de uma forma geral e principalmente do futebol. Começa a escrever suas crônicas no início da década de 1930, nos jornais do pai e no de Roberto Marinho, até resolver comprar um jornal para ele próprio: o Jornal dos Sports. Antes de Mário Filho, existiu Mário Pollo, que se tornou amigo e personagem de Mário Filho. Mas é bom lembrar que, no tempo de Mário Polo, a década de 1910, a história era outra. Era o remo que mandava. As crônicas de Mário filho têm uma particularidade interessantíssima. Na abertura, ele trata do factual, do assunto que o moveu a escrever. A partir dali, Mário começa a desfiar uma série de casos semelhantes, de tempos passados, narrando-os de uma forma tão envolvente, que não nos permite parar de ler. Ao fim, ele volta ao caso inicial, para o desfecho quase sempre inusitado. Cada crônica é uma novela arrebatadora em dez ou doze parágrafos.

– Além de Mário Filho, Thomaz Mazzoni é apontado como patrono da crônica esportiva. De que forma o estilo desses cronistas fundadores ainda reverbera nas produções contemporâneas do gênero?

Mário Filho era de contar com maestria, em parágrafos longos, mas de frases curtas, o que os personagens do futebol ou os críticos criavam: as novas gírias e neologismos que vinham da arquibancada, do campo, dos vestiários; os apelidos dos jogadores, a origem das jogadas e o porquê dos nomes que recebiam etc. Ou seja, Mário Filho contava a história do futebol de sua época. Thomaz Mazzoni, ítalo-brasileiro radicado em São Paulo, também criava a história. São dados por ele os apelidos dos grandes clássicos paulistas: Choque Rei (Palmeiras x São Paulo), Derby Paulista (Corinthians x Palmeiras), Majestoso (São Paulo x Corinthians) e San-São (Santos X São Paulo). Deu apelido também aos times: Timão, ao Corinthians; Clube da Fé, ao São Paulo; Campeoníssimo, ao Palmeiras; Moleque Travesso, ao Juventus. Ele mudou a forma de a imprensa paulista escrever sobre futebol, procurando uma linguagem coloquial, mais acessível ao torcedor. E tudo isso permanece vivo em vários cronistas atuais.

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Capa do primeiro livro da Coleção “Crônicas eternas do futebol” – Foto: Andre Pinnola

– A crônica esportiva nasceu na imprensa escrita, mas passou a circular também pelo rádio, pela TV e, hoje, pelas redes sociais. Que transformações essa travessia entre meios impõe ao gênero, especialmente no que diz respeito à linguagem, ao alcance e à profundidade dos textos?

A língua é viva, dizem os mestres. Entre os jornalistas que escrevem em jornais e revistas tradicionais, ainda é possível encontrar profundidade nos textos, cuidado na apuração da informação, a narrativa mais clássica. No rádio e na TV, veículos de comunicação instantânea, com as devidas exceções, velocidade é a palavra-chave. E, claro, o cuidado com as palavras e a construção da linguagem apropriada e precisa são atropeladas muitas vezes. Na internet, criou-se o texto preguiça. Preguiça de quem lê e preguiça de quem escreve. Tudo em cinco frases. Se quiser saber mais, clique aqui. O mundo dos hiperklinks. As redes sociais levaram o idioma, quiçá a literatura, ao caos, pq nls vc escv td de qq jto (ou seja: porque nelas você escreve tudo de qualquer jeito).

– A coleção “Crônicas eternas do futebol” reúne textos de grandes nomes do jornalismo esportivo brasileiro, mas também de personalidades que viveram o futebol dentro de campo. O que essa variedade de vozes revela sobre o futebol enquanto fenômeno cultural?

Revela, principalmente, uma questão sociocultural. Dos campos de jogo, vêm vozes que falam do sonho de ser craque para dar à família melhor condição de vida, das dificuldades de chegar lá, dos preconceitos que sofrem pela cor da pele, por exemplo. Cicatrizes que ficam escondidas até que tenham a oportunidade de trazê-las à tona. São vozes de pessoas simples, que precisam muitas vezes que outros mais letrados escrevam por elas. Essas vozes são poucas na crônica esportiva e contrastam com a maior parte das vozes que detêm o status de cronista, a maioria com origem nas classes sociais média e alta.

– E a coleção tem uma proposta de internacionalização, com traduções para o espanhol, o francês e o inglês. Como você vê o potencial da crônica esportiva brasileira no exterior?

O potencial certamente existe, já que o futebol brasileiro é conhecido mundialmente. Mas é um público a ser conquistado, porque nunca existiu um trabalho consistente de divulgação da crônica esportiva brasileira no exterior. Aliás, não só dela: embora a cultura brasileira seja muito atraente e reconhecida, ainda há uma excessiva timidez em projetos continuados de difusão internacional dela. Ajudar a reverter isso é exatamente a proposta do coletivo A Ponte Invisível. Então, é um trabalho de longo prazo, mas muito promissor e instigante de ser feito.

– Mesmo quem não acompanha futebol pode se emocionar com uma boa crônica sobre o tema. Que autores ou textos da coleção você recomendaria especialmente para esses leitores mais “literários”?

Mário Filho, como já demonstrei, é imperdível. Mas em cada um encontramos literatura. Os leitores vão encontrar nessa coleção os épicos, os dramaturgos, os líricos. Estão lá, como bem disse Nélson Rodrigues, os centauros do futebol (metade jornalistas, metade torcedores) e suas crônicas eternas sobre a grande paixão nacional.

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