Conheça Bruna Schelb: guardiã das ‘coisas inestimáveis’ por meio do cinema

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Diretora registra, com seu olhar, entes queridos, detalhes e cotidiano no interior (Foto: Luis Bocchino/ Divulgação)

Foi em uma chácara de um distrito de Cataguases que Bruna Schelb nasceu, brincou com seus primos e viu filmes com a família de nove pessoas que moravam com ela. Hoje, aos 33 anos, ela percebe esse passado como algo marcante para entender sua trajetória enquanto diretora e trabalhadora do cinema. Com o primeiro curta dirigido em 2017, chamado de “O vampiro da ocupação”, e o primeiro longa selecionado para a mostra Aurora do Festival de Cinema de Tiradentes em 2018, chamado de “IMO”, ela tem uma trajetória de várias produções audiovisuais, exibidas em cerca de 150 festivais e mostras no Brasil e no mundo. Também pesquisadora do doutorado na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e uma das criadoras da produtora Filmes do Mato, ela decidiu fincar o pé: não iria sair do interior para fazer o cinema em que acreditava. Essa trajetória, marcada por perdas e por tentativas de guardar memórias por meio das imagens, fez com que ela criasse obras cheias de detalhes e de “coisas inestimáveis” que busca capturar com o próprio olhar. 

Na chácara em que ela morava, tinha uma televisão que só podia ser ligada com o aval de seu avô. Só havia uma exceção: os filmes, que eram alugados. “Cada pessoa da minha família tinha um gosto: minha avó gostava de filmes de ação, meu avô de faroeste, minha tia de terror e minha mãe de filmes de amor. Eu estava sempre colada com alguém pra ter a opção de assistir algo. Minha mãe fala que desde criança, se me largasse vendo a mesma coisa por duas mil horas, eu passaria esse tempo todo assistindo.”

Ela entende que, nessa época ainda tão jovem, a influência dessas pessoas a ajudou a conhecer coisas que talvez não notasse por conta própria. E também a própria convivência em família foi despertando esse seu lado criativo. “Atualmente, consigo reconhecer que, com os meus primos, estava sempre criando estados de suspensão da realidade. Eu sempre falava:  ‘Hoje a gente vai brincar de barbeiro, e o Matheus vai cortar o cabelo da Viviane’. Aí ele cortava mesmo e dava maior confusão. Depois falava: ‘Hoje a gente vai pintar uma parede com cal’. Eu não gostava de estar na ação, mas de falar o que eles tinham que fazer. Claro, mandona, né? Mas acho que isso tem muito a ver com o trabalho de direção. (…) Sem procurar, a vida foi me colocando nesse caminho”, relembra.

A trajetória pelo cinema, no entanto, passou pelo Instituto de Artes e Design e até pela Faculdade de Jornalismo que cursou. Isso porque, naquele começo, ainda não sabia exatamente o que queria fazer — e ter podido experimentar entre as linguagens artísticas foi essencial para que ela entendesse, assim como os encontros que também teve, com outras pessoas que estavam trilhando seus caminhos. Foi exatamente o que aconteceu quando conheceu seu atual marido, Luis Bocchino, até então também estudante, logo depois de filmar seu primeiro curta, e mostrou pra ele o que estava escrevendo. “Nem era um roteiro direito, não estava no formato, era só algo escrito no word. Ele me falou que a gente ia sentar junto pra arrumar e ficar no formato e ia filmar. Isso virou o filme ‘IMO’”, conta sobre esse longa. Ainda hoje os dois continuam a parceria, criando juntos a Filmes do Mato, e ele fazendo a direção de fotografia de suas obras — para ela, é como se ela fosse a sonhadora e ele o realizador.

Aquele começo, para Bruna, foi marcado pelo ímpeto de fazer, ainda sem saber como as coisas que queriam eram feitas ou como eram difíceis. Apesar de não ver exatamente uma unidade entre suas obras, reconhece um pouco dessa vontade de experimentar e de falar com sinceridade sobre tudo em que ela acredita. “Acho que faço filmes pra falar com as pessoas que eu já amo, e acaba falando com outras pessoas também. (…)Às vezes o amor leva pro medo, pra violência ou pra tristeza, mas em geral o amor é bom. E esse é um caminho que sempre procuro fazer quando estou inventando.” Isso se repete, por exemplo, no uso que faz das histórias da própria família, de vivências da infância ou até da voz de entes queridos nas obras. Mas mesmo tantos filmes depois, e de trabalhos premiados, ela ainda se sente no começo: “Eu tenho um caminho enorme a fazer (…).  Às vezes eu penso porque eu faço filme e acho que é pra eternizar certas coisas. Eu sou uma acumuladora muito por causa disso. Quero me lembrar de cada coisinha”. 

Viver da emoção

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Sessão de exibição de ‘IMO’ em Tiradentes, em 2018 (Foto: Divulgação/Mostra de Cinema de Tiradentes)

Quando “IMO” estava sendo finalizado, em 2017, Bruna recebeu uma ligação da mãe contando que a avó tinha sido internada e estava passando muito mal, de supetão. Naquele momento, que ela estava justamente realizando um sonho e que tinha conseguido aprovar a obra para ser exibida em um dos mais prestigiosos festivais de cinema do país, em Tiradentes, ela também estava vivendo a perda de uma das pessoas mais centrais em sua vida. “Depois de 5 dias que ela morreu eu fui para Tiradentes. Ao mesmo tempo que sinto que estava vivendo aquilo, estava completamente assolada pelo luto. Acho que ter passado por todas essas coisas juntas fez com que a trajetória do filme fosse muito diferente.” 

Bruna reconhece que, por conta desse impacto, sentiu que perdeu o “timing” do filme. “Depois que tudo passou e vivi esse luto, transformei toda a dor em trabalho. Comecei a me esforçar muito pra entender o mundo dos editais.” Mas o “IMO” seguiu sendo um projeto no qual ela acreditava muito. Até que, em 2025, ele passou a ser distribuído pela Descoloniza Filmes, que levou o longa para mais cidades e um circuito comercial. “O filme está lá, ele existe como existe, e ele se transforma, porque eu estou vendo e eu sou outra pessoa. Acho que eu cresci e que faria outras escolhas. Mas eu defendo muito o filme ainda. Ele foi um exercício de experimentação, e muito radical. Ele foi muito ingênuo, também. E todas essas coisas foram características e qualidades do filme.”

Partindo da vontade de contar histórias para quem estava aqui e continuar esse esforço de guardar o que era precioso pra ela, se lembrou de uma “história mentirosa” que seu avô usava para entretê-la. Era sobre a invenção nada realista do panetone. Mas com a dor que sentia, resolveu contar a história de uma outra forma, dessa vez abordando a morte precoce do pai de seu avô. Essa acabou se tornando sua obra mais premiada, chamada de “A vida é coisa que anda”, e foi dedicada totalmente a ele e até com sua breve participação. Foi a forma que encontrou de driblar a morte, novamente quando perdeu uma prima, aos 30 anos, logo depois que tinha gravado a voz dela em “Déia e Dete”, curta de animação. “Esses detalhes e essas riquezas não são só pra ser fidedignos à realidade, eu sou até um pouco contra isso. É para recolher essas coisas e ter certeza de que, no filme, vão estar pra sempre ali. Me sinto uma guardiã das coisas importantes, mas pra mim as coisas importantes são uma colher, algum papel que a pessoa usou, a letra das pessoas.”  

Mas também, foi com essas experiências que ela entendeu o que tornava a sua profissão tão especial. “Eu não consigo não me deixar influenciar. Tem momentos da nossa vida que a gente quer falar disso ou daquilo, e eu acho que é justo, na arte, deixar isso acontecer. Não é em todo trabalho que podemos deixar isso transparecer. Quem trabalha com algo burocrático, por exemplo, não pode fazer isso. Para mim, é um privilégio que não deixo de lembrar.”

‘Acima de tudo, a diversão’

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Doutoranda na UFJF acredita em ideias do surrealismo para criar (Foto: Luis Bocchino/ Divulgação)

Mesmo ela contando que trabalha todos os dias com cinema, buscando editais, festivais e ainda desenvolvendo suas histórias, viver disso não é nada fácil. Por isso, ela também se orgulha muito do trabalho que faz no doutorado, que já está na fase de escrita da tese. “Estou desenvolvendo como jogos surrealistas para serem aplicados a trabalhos de ficção. São técnicas para ter ideias. Os manuais de roteiro já partem de você ter ideias, mas da onde que elas vêm?”, reflete. Para além desse trabalho, ela entende que a escolha de ter permanecido em Juiz de Fora também passou por um projeto de querer contar as histórias mais próximas dela.  “Eu quero muito ficar aqui e crescer junto com a cidade. Devo muito a Juiz de Fora, me formei pessoa aqui. Se eu faço salvaguarda das memórias, queria muito filmar essas ruas daqui, não só pelo registro, mas também pra celebrar e enaltecer. Não tenho na minha filmografia um filme 100% juiz-forano, mas queria ter”, diz, com esperança de mudanças.

Essa relação com o surrealismo fez com que levasse pra vida uma frase do escritor André Breton: “Acima de tudo, a diversão”. E explica: “Eu sou muito séria, eu sou brava até, mas eu estou sempre me divertindo. Porque se não, por que estaríamos fazendo isso? É tão difícil, passamos meses e meses tentando um edital, fazendo projeto, sem trabalho, sem conseguir se sustentar só com isso. Pelo amor de Deus, é o mínimo que posso fazer por mim e pelas pessoas que se prestam a trabalhar comigo.” Mas, para ela, essa diversão não está só exatamente no engraçado, na piada que ela faz e no momento de suspensão em saber se os outros vão — ou não — rir com ela. “O que vai acontecer comigo, o que aconteceu com minha avó e com a minha prima? Acho que o cinema, para mim, também tem esse mistério da morte. Tem que ter algo que a gente não entende, uma mágica.”

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