Artigo | Recalque, projeção e as pulsões da psicanálise em ‘Cidade dos Sonhos’, obra-prima de David Lynch

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Em ‘Cidade dos Sonhos’, o renomado e saudoso realizador David Lynch utiliza os tropes da estética surrealista para construir sua magnum opus cinematográfica, mergulhando de cabeça em um thriller romântico neo-noir que influenciou e continua influenciando inúmeros nomes do cenário do entretenimento – e, para além de uma aula de direção, roteiro, fotografia, atuação e montagem, o projeto emerge como uma potente análise da psique humana que bebe das fontes freudiana e lacaniana com paixão admirável.

A trama, que divide-se em algumas vinhetas que convergem para um mesmo ponto à medida que a narrativa se desenrola, é centrada em Betty Elms (Naomi Watts), uma aspirante à atriz que se muda de Ontário, Canadá, para Los Angeles, desejando tornar-se uma grande estrela de cinema. Hospedando-se na casa da tia, ela descobre que uma jovem sem memória de quem realmente é (Laura Harring) invadiu a residência, com uma ecoante lembrança de que estava em um acidente de carro. Assumindo a persona de Rita, em homenagem à icônica Rita Hayworth, ela é auxiliada por Betty a descobrir o que aconteceu – apenas para ambas se envolverem em uma potente história de amor cujas consequências são avassaladoras e ambíguas.

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Assim que entramos no ato final do longa, percebemos que a história envolvendo Betty e Rita não é a verdade – pelo contrário, funciona como uma profunda remodelação de supostos fatos que nem sequer sabemos se são críveis. Ao que tudo indica, Betty, na verdade, é Diane Selwyn, que teve a chance de se mudar para Hollywood após o falecimento da tia lhe deixar um dinheiro significativo para tentar a carreira de atriz. Fazendo audições e mais audições para os testes, ela se envolveu com Camilla Rhodes (a real Rita), ambas disputando pelo papel protagonista de um projeto intitulado ‘The Sylvia North Story’. Porém, o diretor Adam Kesher (Justin Theroux) deu o papel a Camilla, deixando Diane em segundo plano nos holofotes. As duas, por sua vez, se envolveram em um potente e apaixonante relacionamento escondido que terminou abruptamente, com Camilla e Adam firmando noivado pouco antes de uma destruída Diane dar início a seu plano de vingança.

Como vemos, todas as sequências arquitetadas por Lynch são um mero espectro surrealista do que aconteceu: após se sentir traída e mergulhar em vórtice de decepção e frustração, Diane escalou o mercenário Joe Messing (Mark Pellegrino) para assassinar Camilla, eventualmente se remoendo de culpa pelo ímpeto homicida e tirando a própria vida com um tiro na cabeça – o que dialoga com uma das últimas cenas da história entre Betty e Rita, incluindo a explicação dos múltiplos e misteriosos objetos que as acompanham (a bolsa com o dinheiro, a chave azul e a pequena caixa). E é aí que Lynch reitera toda sua genialidade narrativa – mantendo-se fiel à destituição da realidade conforme fornece explicações sólidas para o que, de fato, aconteceu.

A verdade é que o cineasta, ao seguir de perto as investidas da escola surrealista, bebe bastante das pulsões psicanalíticas de Sigmund Freud e Jacques Lacan, principalmente no tocante à funcionalidade do Inconsciente humano. Afinal, são várias as interpretações sobre o longa-metragem: a primeira delas, mais simplificada, por assim dizer, divide o projeto em dois momentos bem claros – o primeiro correspondendo ao mundo dos sonhos e ao momento imediatamente anterior ao que Diane tira a própria vida; e o segundo à realidade, que foi rearranjada na narrativa de romance entre as duas protagonistas.

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A segunda promove uma discussão sobre recalque e projeção, conceitos que se espalham por cada um dos elementos dessa obra-prima cinemática. Segundo Freud, o recalque é um mecanismo de defesa que afasta a consciência de ideias, sentimentos ou impulsos que são inaceitáveis; a projeção, por sua vez, funciona como um artifício semelhante em que o indivíduo atribui seus próprios pensamentos, sentimentos e características a outra pessoa, que não necessariamente exige a obrigatoriedade de uma condição crítica da saúde mental. E, dentro de ‘Cidade dos Sonhos’, esses dois mecanismos se aglomeram em uma suntuosa exploração de uma mente descarrilhada pela contrição de algo que está fora de seu controle – no caso, a de Diane.

A personagem encarnada por Watts nos leva a acreditar que ela está apenas recalcando seus desejos mais sombrios – a falta de uma reciprocidade necessária de Camilla, que parece tê-la usado apenas como objeto de descarte; a falta de prospecto dentro do cenário do entretenimento (uma representação simbólica da morte da indústria hollywoodiana); e seu crescente ódio pelo relacionamento de Camilla e Adam, que deveria lhe pertencer. E, à medida que a frustração cresce, ela se enxerga no espelho como uma vítima que não sabe mais o que faz – e é aí que o suposto recalque transforma-se em projeção. Imbuída em uma insanidade que a leva a duvidar dos próprios atos, seu último respiro de sobrevivência ou de pós-vida é criar uma persona totalmente diferente, que a transforma em uma espécie de heroína condecorada com tudo aquilo que sempre mereceu – apoio da tia, amigos próximos, um romance duradouro e um mistério tirado direto dos filmes.

Dentro desse espectro, Betty funciona como tudo aquilo que Diane queria ser – e Rita, assim, torna-se submissa a seus desejos (não em um sentido pejorativo, e sim dentro de uma projeção em que ambas podem ficar juntas). O desejo de Betty de ter sua grande chance em Hollywood também aparece no momento em que faz audição para um ambicioso longa-metragem, arrancando elogios dos produtores, do diretor e de seus parceiros de cena. E como sabemos que essa projeção é apenas uma manifestação inconsciente de alguém já levado pela loucura e pela culpa? Pela materialização da moral da própria Diane através do casal idoso que o alter-ego Betty conhece em sua viagem para Hollywood.

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O casal, formado por Irene (Jeanne Bates) e seu companheiro (Dan Birnbaum), funcionam como um constructo palpável da bússola ética que acompanha a protagonista – mostrando-se convidativos e afeiçoados no começo e transformando-se na gota d’água que compele Diane a se matar. É possível, inclusive, encará-los como as versões mais velhas de Camilla e Adam, cuja vida juntos foi interrompida pelo desejo psicótico de Diane – e, puxando elementos mitológicos, ambos podem representar as Erínias (cuja sonoridade se aproxima do nome Irene com provável relação de causa e consequência), deusas gregas do remorso que punem pessoas que cometem atos errôneos, enlouquecendo-os até a morte. E, se Irene e seu companheiro são representações materiais do superego de Diane (ou seja, de sua Consciência), encontramos sentido em meio a uma artística representação da mente humana.

Lembrando que ‘Cidade dos Sonhos’ será relançado nos cinemas em 17 de abril, remasterizado em 4K.

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