Primeiro executivo assumidamente gay em uma montadora, François Dossa nasceu na França, em 1963, e se mudou para o Brasil em 2001. Sua carreira é pautada pela defesa da diversidade e sustentabilidade dentro das empresas que trabalha. Mesmo atuando em cargos importantes, só assumiu a homossexualidade no meio corporativo aos 38 anos, quando resolveu pôr fim aos comentários maldosos que ouvia pelos corredores.
“Em chamei uma reunião e falei: ‘Eu ouvi dizer que estão comentando pelos corredores que eu sou gay. Sim, é verdade. E a partir de agora eu não vou admitir esses comentários. O próximo que eu ouvir é rua’”, contou.
Dossa tem uma sólida carreira no mercado corporativo. Chegou ao Brasil como CEO do banco Societas Generales, em 2001, e também comandou o grupo Nissan, atuando como vice-presidente da aliança Renault-Mitsubishi-Nissan no Brasil e como diretor-executivo de Estratégia e Sustentabilidade na Jaguar Land Rover no Brasil.
Após 40 anos de experiência em diversas companhias, Dossa resolveu colocar alguns ensinamentos no livro ‘O construtor de pontes’, lançado pela Editora Citadel.
No meio de uma grande cruzada de governos de extrema direita contra a agenda de diversidade, o executivo critica as empresas que estão acabando com setores e políticas de diversidade. Atuando hoje como consultor de novos negócios e Head de sustentabilidade da companhia de TI Tata Consulting Services (TCS), Dossa afirma que também se considera um ativista e quer mostrar para executivos que olhar para a diversidade pode fazer com que suas empresas cresçam cada vez mais.
“Eu me tornei um ativista porque não acredito nessa história de energia masculina nas empresas e vou lutar até o fim para defender as minhas ideias de integração e diversidade. Todas as minorias precisam se manifestar sem medo e a gente não pode ficar calado. Ninguém vai mais voltar pro armário”, afirmou.
Confira a entrevista na íntegra:
Como foi o começo da sua trajetória profissional? Como você encarou o fato de ser homossexual?
Eu soube que eu era homossexual aos 16 anos e foi algo tranquilo na minha vida pessoal. Na profissional, eu só me senti seguro para me assumir no ambiente corporativo aos 38 anos, quando vim para o Brasil como presidente do banco Societas Generales. Eu ouvia alguns comentários nos corredores e resolvi colocar um basta. Chamei uma reunião e disse: ‘estou ouvindo alguns comentários nos corredores dizendo que eu sou gay. Sim, é verdade. E a partir de agora eu não vou admitir esses comentários. O próximo que eu escutar é rua’.
Você atuou em diversas áreas, inclusive automobilística, comandando a Nissan, a Renault e a Land Rover no Brasil, e foi o primeiro presidente assumidamente gay em uma montadora. O preconceito nesse ramo é mais pesado do que em outros?
O setor automotivo é um meio um pouco mais masculino mesmo, mas se você olhar para os C-levels de grandes bancos, quantas pessoas não brancas você vê? O setor financeiro também apresenta uma falta significativa de diversidade. Nesse sentido, os dois setores acabam sendo muito parecidos.
Você publicou o livro justamente em um momento muito delicado da pauta de diversidade, com governos de extrema-direita atacando essa agenda e grandes empresas acabando com setores e programas de diversidade. Como você vê o cenário atualmente?
Vejo todas essas movimentações com muita preocupação. Vejo muita similaridade nesse avanço da extrema-direita na Europa com o cenário social e político dos anos 1930, que pavimentaram o caminho para o nazifascismo, e isso é muito grave.
Eu não acredito nesse discurso de energia masculina nas empresas e nem de cultura Woke, porque diversos levantamentos mostram que as empresas mais diversas são também as mais rentáveis. É preciso que a gente lute de forma ativa contra esses retrocessos.
Quem é o público alvo do seu livro?
O público-alvo é, principalmente, CEOs e C-Levels das empresas, além de membros de Comitês Executivos de companhias e empresários, mas qualquer minoria que olha para o topo das empresas e não se vê representada lá deveria ler o livro. Minha intenção é mostrar que todo mundo é bonito e que as empresas que reconhecem essa beleza em cada indivíduo serão melhores e mais rentáveis. O livro é resultado de mais de 40 anos de carreira e mostra que todos podem ter oportunidades de crescimento e que as empresas devem valorizar essas diferenças.
Hoje muito se fala em pinkwashing e greenwashing sobre as empresas que usam as pautas de diversidade e sustentabilidade para limpar a própria imagem. Como você vê isso?
Hoje em dia a gente escuta muito de empresas um discurso bonito sobre a agenda ESG, com slides coloridos, mas na realidade nada muda. Para serem genuínas, essas iniciativas precisam mesmo sair do topo da empresa.
Eu mesmo tive uma experiência na Land Rover, quando me chamaram pra ser CEO e me convidaram para assumir também a diretoria de diversidade. Primeiro eu recusei, porque não queria ser apenas um álibi para a empresa, que estava sofrendo um processo de assédio moral envolvendo uma ex-funcionárias trans. A diretoria conversou comigo novamente depois para me convencer e aí eu disse que aceitaria se a única mulher do comitê executivo dividisse o cargo comigo. Eles toparam e a gente conseguiu implantar várias mudanças.
Quais foram essas mudanças?
Implementamos uma política de cotas, adotando uma abordagem do topo para a base da companhia. Inicialmente era contra cotas, mas percebi que sem elas a situação não iria avançar.
Nós também instituímos treinamento obrigatório para toda a empresa em temas de diversidade, começamos a auditar ano a ano a evolução da companhia nessas políticas, e implementamos um ambiente mais acolhedor com as diferenças na empresa.
O que as empresas e a sociedade civil precisam fazer para evitar um retrocesso ainda maior nessas pautas?
Muitas pessoas que acreditam nesse discurso estão caladas por medo da pauta da extrema-direita que está crescendo. Nós não podemos aceitar isso, essa parte da população não pode se calar. Hoje eu me considero um ativista e vou ser uma voz que vai sempre defender as políticas de diversidade. Ninguém vai voltar pro armário por causa desse discurso.
Nós temos que chamar as lideranças das empresas para participarem desse movimento, porque uma empresa mais diversa é uma empresa que dá mais lucro. As políticas de diversidade precisam ser reforçadas, mas não só isso, elas precisam vir de cima e, além de serem implementadas, elas precisam ser monitoradas também, para que deem resultados objetivos.
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