Crítica | Indicado ao Oscar de Filme Internacional, ‘A Garota da Agulha’ é um Terror Expressionista Sobre Mulheres Abandonadas pela Sociedade

Qual o seu maior medo? Esta é a pergunta-chave para mergulhar na extraordinária e perturbadora trajetória de Karoline (Vic Carmen Sonne) em A Garota da Agulha (The Girl with the Needle), do sueco Magnus von Horn (Suor). Lançado na competição pela Palma de Ouro em Cannes 2024, o longa dinamarquês recebeu uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional e chega nesta sexta, dia 24 de janeiro, no MUBI Brasil

Inspirado pelo expressionismo alemão, com sua estética lúgubre, expressões marcantes e o uso do preto e branco, Magnus von Horn cria um conto de fadas para adultos invertido. Em um universo povoado por maltrapilhos e desfigurados, o filme revela a sociedade como o verdadeiro monstro. Assim como o porteiro de hotel de luxo (Emil Jannings) em A Última Gargalhada (1924), de F. W. Murnau — cuja expressão reforça o horror ao ser forçado a abandonar seu posto por conta da idade e passar a limpar banheiros —, Karoline é uma mulher arrancada do tecido social. Sozinha, desempregada, grávida e rejeitada pelo “doador” de sêmen, ela é lançada em uma luta desesperada por sobrevivência.

Vic Carmen Sonne atua com forte semelhança do expressionismo alemão

Em um cenário caótico de Copenhague pós-Primeira Guerra Mundial, Karoline é obrigada a deixar o seu apartamento por falta de pagamento e acaba vivendo em condições sub-humanas de moradia: um galpão com vidraças quebradas, goteiras, mofos e ratos. A ambientação inicial já nos provoca desgosto e repulsa, algo cuidadosamente construído ao  longo da narrativa para afastar cada vez mais os espectadores dos personagens. Vista como viúva — já que o marido não voltou da guerra —, a moça trabalha como costureira numa enorme fábrica têxtil. 

O título A Garota da Agulha é, portanto, uma escolha literal em relação à sua profissão, mas também uma metáfora escondida sobre sacrilégio e desonra. Envolta em uma atmosfera sombria, Karoline consegue encontrar alguma luz ao despertar o interesse do dono da empresa, Jørgen (Joachim Fjelstrup). Em uma cena graciosa que homenageia Paris, Texas (1984), de Wim Wenders, o empresário a segue pelas ruas e conquista sua afeição. Promessas de casamento são trocadas, assim como de uma casa para substituir o ninho de ratos em que ela vive, e Karoline se rende aos braços do patrão, até que o fruto dessa união aparece em seu ventre. 

Quando a fábula da Cinderela, escolhida pelo príncipe entre milhares de costureiras, parecia prestes a se realizar, o choque de realidade entra em cena. A mãe de Jørgen exige que ele escolha entre assumir o filho de uma operária ou manter sua posição como herdeiro em um bom casamento com uma jovem de alta classe. Entre a covardia, o capitalismo e o patriarcado, Karoline não tem nenhuma chance. Se antes a situação já era ruim, agora, sem emprego e com a barriga crescendo, ela se vê à beira do desespero.

É com esses contrastes entre o alívio momentâneo e a queda iminente no abismo que Magnus von Horn constrói, em A Garota da Agulha, uma narrativa envolvente e audaciosa sobre os limites do ser humano ao enfrentar os monstros sociais. Essa abordagem já tinha aparecido no seu filme anterior, Suor (Sweat, 2021) — também disponível na MUBI Brasil —, no qual um influencer fitness é perseguida por um dos seus admiradores e atormentada pela  exposição online, enquanto o ódio virtual se manifesta na vida real através dela mesma.

Saindo da contemporaneidade para o início do século XX, Magnus von Horn concede muito mais camadas à sua protagonista, em um roteiro elaborado ao lado de Line Langebek Knudsen. A gravidez, no entanto, é apenas o início da odisseia emocional de Karoline — e do público. Nesse universo sombrio, o marido desaparecido retorna ao lar com uma máscara cobrindo o pedaço ausente de seu rosto, mutilado pela guerra. Embora aceite o filho que não é seu, Peter (Besir Zeciri) luta contra a ojeriza da esposa e seus próprios episódios psicóticos pós-traumáticos. 

Sem conseguir emprego, a agulha do título volta para desempenhar um papel diferente, como no filme O Acontecimento (2021), de Audrey Diwan. Neste segundo momento de desespero, em um banho público, Karoline encontra acolhimento em outra mulher mais velha, Dagmar (Trine Dyrholm), que vive com sua filha Erena (Ava Knox Martin). Em tempos de vacas magras, Dagmar parece bem-sucedida no seu negócio clandestino de adoção. 

Belíssimo enquadramento com a atriz Trine Dyrholm

Dividida entre formar uma família com o marido desfigurado e atormentado ou dar um futuro melhor para sua filha, Karoline recorre a Dagmar.  Após entregar o bebê para outra família, ela se estabelece como cuidadora de outras crianças e ajudante na loja de doces de Dagmar.  Quando parecia, entretanto, que Karoline finalmente encontraria redenção nas mãos de sua “fada madrinha”, o enredo expõe a realidade ainda mais cruel da sociedade em relação às mulheres.

A Garota da Agulha revela um mundo cruel e implacável, como a personagem da “fada madrinha” descreve. Ao retratar esse universo sem espaço para esperança ou cura, onde só restam destruidores e destroços, o filme afunda o espectador em uma lama sufocante, sem respiro. Magnus von Horn constrói uma fábula aterradora que, se você tem receio de confrontar o lado mais sombrio da natureza humana, pode ser melhor evitar essa experiência catártica.

Lançado no Mostra Competitiva do Festival de Cannes 2024, A Garota da Agulha estreia no streaming MUBI Brasil a partir de 24 de janeiro de 2025.

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