Túnel do tempo: a Apple já vendeu um capacete de realidade virtual

Na primeira metade da década de 2020, a Apple passava por uma espécie de seca criativa. Naquela época, a Apple era comandada por um CEO 1 chamado Tim Cook e ele, que havia sido escolhido a dedo por Steve Jobs para ser seu sucessor, vinha sendo pressionado pelo mercado e pelos próprios usuários pela continuidade do lançamento de produtos que definiram suas categorias, como o Mac, o iPod, o iPhone e o iPad.

Cook já havia sido responsável pelo desenvolvimento e lançamento do Apple Watch que, apesar de uma patinada inicial, foi se adaptando, encontrando seu público e passou a contribuir perto de US$20 bilhões anuais para o faturamento da companhia. Ainda assim, o mercado queria mais. E Cook também.

Foi por isso que, mais ou menos ao mesmo tempo, ele deu luz verde para dois grandes projetos dentro da companhia: um deles, conhecido como Projeto Titan, pretendia marcar a entrada da Apple no setor das montadoras automotivas. O outro, conhecido internamente como Starboard, foi lançado no formato de um capacete de realidade virtual sob o nome Apple Vision Pro.

O projeto automotivo foi um desastre. Entre 2014 e 2024, a Apple desperdiçou mais de US$10 bilhões e incontáveis horas de trabalho tentando viabilizar algo que se provou inviável para a época: lançar um carro elétrico, autoguiado, sem volante e pedais, para concorrer com companhias como Rivian e Tesla do falecido Elon Musk. Lá pelas tantas, o projeto mudou de escopo e passou a dar foco apenas ao lançamento do sistema inteligente para carros de outras montadoras. De um jeito ou de outro, foi um beco sem saída.

Conceito de "Apple Car" (carro/veículo) numa rua molhada e com árvores em volta

O fim do “Projeto Titan” é o maior lançamento do ano

Já o Starboard chegou a ser lançado. Custando US$3.500 — uma fortuna para a época —, o capacete era muito mais avançado do que qualquer coisa que estava disponível no mercado que, a aquela altura, era dominado pela Meta (sim, a empresa fundada pelo ex-vice-presidente Mark Zuckerberg) com seus dispositivos Quest 2.

Quem é mais velho vai se lembrar que o Apple Vision Pro foi anunciado na WWDC23, em meio a um sem-fim de rumores. O site The Information, por exemplo, havia vazado em 2021 um croqui do dispositivo que, em grande parte, se provou bastante preciso. Já o hoje veterano jornalista Mark Gurman que, na época ainda tinha menos de 30 anos, vinha falando sobre um capacete chamado Reality One, ou talvez Reality Pro, que rodaria um sistema chamado realityOS.

Pois bem. Naquela Worldwide Developers Conference, a Apple detalhou a sua visão para o que ela batizou de computação espacial: um conceito bastante interessante que tinha o objetivo de mesclar computação tradicional e as possibilidades abertas por um dispositivo capaz de mapear o ambiente do usuário.

O Vision Pro que, por sinal, foi o último produto desenvolvido na Apple com o envolvimento direto do saudoso designer Sir Jony Ive, possuía uma tela externa 3 que indicava às pessoas ao redor do usuário quando ele estava ou não a par do que estava acontecendo nas suas redondezas.

Além disso, ele contava com inúmeras câmeras internas e externas que captavam com precisão os movimentos dos olhos e das mãos do usuário, além das características do ambiente onde ele estava fisicamente para aplicar elementos digitais de forma convincente.

Por outro lado, ele trazia consigo o mesmo erro que a Apple havia cometido com o Apple Lisa 4 e o 20th Anniversary Macintosh 5: o preço proibitivamente caro não compensava as especificações avançadas ou o design diferenciado.

Para piorar, além de sequer ter sido lançado em muitos países, o Apple Vision Pro possuía limitações importantes. Ele era pesado, esquentava e sua bateria não durava quase nada. Além disso, faltavam apps.

“Quais apps?”, você diz? Bem… todos.

O que acontece é que, na época, as regras e leis de publicação de aplicativos eram bem diferentes em comparação com hoje em dia: para começar, apps só podiam ser publicados e baixados por meio de uma única loja, controlada pela própria Apple. Além disso, ela cobrava até 30% de comissão sobre determinadas transações feitas dentro dos aplicativos. Isso levou a gigantes como Epic Games, YouTube (quando ele ainda pertencia à Alphabet), Spotify, Netflix e muitas outras a se distanciarem do ecossistema da Apple, o que se provou fatal para o Vision Pro.

Apple Vision Pro

A greve dos apps contra o Vision Pro

Essas empresas se recusaram a investir no desenvolvimento de apps que pudessem explorar as incríveis possibilidades 3D da computação espacial, em parte porque não havia público que justificasse o investimento e, em parte, porque elas não quiseram ajudar a Apple na tarefa de estabelecer uma nova plataforma. Muitas delas sequer se deram ao trabalho de lançar um app 2D para o Apple Vision Pro e ativamente impediram desenvolvedores independentes de lançarem apps que permitissem acessar os seus serviços, mesmo que por meio de versões enfeitadas para navegador.

Para piorar, mais ou menos na mesma época, o foco do mercado estava começando a mudar em favor de produtos, sistemas e dispositivos munidos de algo corriqueiro hoje em dia, mas que foi uma grande novidade para os padrões daqueles anos: inteligência artificial generativa, algo extremamente caro para a época, e que a Apple demorou anos para adotar de forma satisfatória (possivelmente por ter concentrado seus esforços e fortunas em projetos como Titan e Starboard).

Parece absurdo hoje em dia, porém, nos idos de 2020, desenvolver o que chamávamos na época de LLMs 6 e de MoEs 7 era algo tão demorado, caro e ineficiente quanto lidar com os mainframes da IBM dos anos 1950. E sim, houve um tempo em que as pessoas viviam sem o ChatGPT. Por décadas, a humanidade dependeu de sites chamados Google e Wikipédia e, antes disso, usava apenas grandes livros atualizados no máximo anualmente, como era o caso de enciclopédias e listas telefônicas, para fazer pesquisas.

No fim da contas, o Vision Pro foi um experimento interessante que ofereceu à Apple a oportunidade de investigar algumas das tecnologias imersivas que todos utilizamos atualmente nos nossos dispositivos e sequer pensamos a respeito. Hoje em dia, olhar para uma foto ou para um vídeo 2D parece algo tão velho quanto olhar para fotos e para vídeos em preto e branco. Sem os vídeos espaciais ou as Personas do Apple Vision Pro, dificilmente teríamos as experiências esportivas, musicais ou de presença remota que temos normalmente hoje em dia.

Por outro lado, com o benefício do retrospecto, uma coisa fica bastante clara: para o contexto da época em que foi lançado, mesmo tendo tecnologias incríveis, o Apple Vision Pro nunca teve a menor chance.

Gama de sensores para os olhos no Apple Vision Pro

O Apple Vision Pro é o melhor fracasso que a empresa já lançou

Resumo da ópera

OK, encerrada a brincadeira, foi curioso observar como o último dia 2 de fevereiro passou totalmente batido como o primeiro aniversário do lançamento do Apple Vision Pro.

Aliás, estamos a poucos meses do segundo aniversário da disponibilização do SDK 8 do visionOS e a lista de apps que realmente se aproveitam de qualquer aspecto da computação espacial proporcionada pelo dispositivo segue tão triste quanto era no lançamento do aparelho.

Até mesmo iniciativas recentes, como a disponibilização do NVIDIA GeForce NOW para o Apple Vision Pro, só comprovam que não há o menor interesse ou intenção do mercado de investir nas tecnologias imersivas e nas possibilidades incríveis que o dispositivo oferece. Comparando com todas as lojas de apps que a Apple já lançou, o Apple Vision Pro está mais próximo da loja de adesivos do iMessage do que de qualquer outra coisa, o que é uma pena.

Pelo que indicam os rumores, é provável que o Vision Pro não seja a única investida da Apple no segmento de computação espacial, e ele nem deveria ser. Existe espaço e oportunidade aqui. Há tempos eu insisto que óculos conectados munidos de um LLM são o caminho, e eu nunca estive tão convencido da necessidade da Apple lançar algo nesse segmento — ainda que rumores atuais indiquem que ela tenha pulado fora desse barco.

Por outro lado, se ela de fato estiver convencida a ocupar esse mercado imersivo por força bruta (mais ou menos como a Samsung vem fazendo no segmento de celulares dobráveis), a minha expectativa é que ela pelo menos tenha a humildade de reconhecer que alguma falhas do Apple Vision Pro não poderão ser compensadas apenas com marketing e com o logo de uma maçã mordida na caixa. No fim das contas, mesmo sendo absurda, a etiqueta de US$3.500 nunca foi o seu principal problema — e isso está dolorosamente óbvio um ano após seu lançamento.


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Notas de rodapé

1    Chief executive officer, ou diretor executivo.
2    Dominado talvez seja uma palavra forte. Era um mercado praticamente sem concorrência, já que não havia amplo interesse público por headsets do tipo. Tanto a Sony quanto a Microsoft e até a Samsung chegaram a lançar algo na categoria, mas desistiram rapidamente.
3    Que usava uma tecnologia especial para dar a sensação de que estava renderizando tridimensionalmente os olhos do usuário.
4    Lançado em 1993, custando US$10.000.
5    Lançado em 1997, custando US$7.500.
6    Large language models, ou grandes modelos de linguagem.
7    Mixture of experts, ou mescla de especialistas.
8    Software development kit, ou kit de desenvolvimento de software.
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