Nova lei escancara “fábrica” de cidadania italiana no Brasil

Cresce número de queixas de consumidores que perderam direito à nacionalidade e temem prejuízos. Assessorias cautelosas paralisam pagamentos e abertura de processos, mas outras insistem em angariar novos clientes.A limitação do acesso à cidadania italiana para descendentes de emigrados colocou em crise uma lucrativa indústria de assessoria jurídica e administrativa atuando no Brasil e na Itália. Explodem as reclamações de consumidores brasileiros, não raro com contratos já parcial ou totalmente pagos, que se veem lesados por parte de um setor inflado nos últimos anos.

Nos casos extremos, a clientela teme prejuízos de dezenas de milhares de reais ou perdeu, ao menos por ora, o direito à cidadania, por não ter tido seus processos judiciais protocolados na Itália a tempo.

Neste ano, as empresas do ramo viram a bolha estourar ao sofrerem dois golpes consecutivos do governo italiano, que alega ser necessário conter abusos da fábrica de cidadanias. A mais recente lei, que restringe a cidadania a filhos e netos de nascidos na Itália, acerta em cheio o Brasil, onde vivem 32 milhões de descendentes de italianos, a maioria de quarta ou quinta geração.

A plataforma Reclame Aqui registrou de janeiro a maio 567 reclamações, em comparação a 126 no mesmo período do ano passado, de acordo com um levantamento feito pela empresa a pedido da DW, que considerou 50 empresas. As queixas mais comuns incluem descumprimento de contrato ou acordo, mau atendimento ou demora na execução de serviços.

Já no Procon de São Paulo, os atendimentos relativos à indústria da cidadania italiana aumentaram de 16 em 2024 para 55 nos primeiros cinco meses deste ano, sobretudo por oferta não cumprida, dificuldade para alterar ou cancelar o serviço, dificuldade de contato ou demora no atendimento. Dentre estas, 33 ocorreram em abril e maio, na sequência do decreto.

Crise anunciada

As queixas de lentidão e falta de transparência na preparação da documentação e na condução de processos judiciais já eram conhecidas no setor. Mas, em janeiro, o aumento dos custos administrativos para processos ainda não protocolados a 600 euros (equivalente a cerca de 3,8 mil reais) por requerente da cidadania — e não mais 300 euros por família — fez soar o alarme entre os clientes. Cada processo familiar chega a ter dezenas de requerentes.

Depois, um decreto-lei de 28 de março impediu a realização dos serviços já contratados por bisnetos ou tataranetos de emigrados que aguardavam, às vezes por vários meses, seus processos serem protocolados pelas assessorias, inclusive após a efetuação de pagamentos e a reunião da papelada necessária no Brasil e na Itália. O decreto seria aprovado pelo Congresso em maio.

À DW, dez clientes de três empresas citadas no Reclame Aqui pelo menos cem vezes nos últimos seis meses relataram dificuldades em se comunicar com as empresas ou obter a restituição dos montantes já pagos por serviços não prestados. A reportagem teve acesso a contratos, provas de tentativas de contato pelos clientes e comunicações com as empresas neste ano.

O investimento total previsto num contrato conjunto para 18 membros da família de Keroley Paes de Almeida, moradora de Balneário Camboriú (SC), superou 65 mil reais com a Áquila Global Group, sediada em Curitiba. As tratativas se arrastam desde março de 2023, mas não se converteram na abertura de um processo judicial na Itália, segundo a cliente. Um boletim de ocorrência foi registrado em maio na Polícia Civil de Santa Catarina.

Ela relata que tampouco chegou o reembolso resultante da rescisão do contrato pela família no ano passado, depois de alegados prazos não cumpridos, erros na reunião de documentos e comunicação evasiva ou deficiente. “A comunicação já estava muito ruim antes de sair a nova lei. Depois que aconteceu tudo isso, a gente não teve mais resposta nenhuma”, afirma Paes de Almeida.

Direito perdido

A Áquila se apresenta como uma gigante do setor com 10 mil processos para obtenção da cidadania italiana ou portuguesa em curso, além de mais de 4 mil já exitosos. Em 2022, a empresa afirmou à imprensa ter assumido o caso da família do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Em janeiro, outra cliente já recorrera à Polícia Civil do Paraná, alegando o não reembolso de quase 10 mil reais pagos por um serviço nunca realizado. O caso corre atualmente na Justiça.

Já em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, a nutricionista Stephanie Biasio e três parentes contrataram a Nostrali Cidadania Italiana por 35 mil reais em outubro. Agora sem mais direito à cidadania, ela afirma ter sido encorajada a fechar negócio à época pela empresa, que já citava o risco de uma mudança legislativa no futuro próximo.

Falhou a promessa de aproveitar os últimos minutos das regras mais flexíveis, segundo Stephanie. “Nós só entramos (com o processo) porque eles deram a garantia que em dezembro estaria tudo protocolado”, relata.

É o mesmo que conta o programador Cássio Rivadávia, que mora em Lisboa e contratou a empresa no fim do ano passado. “Quando estourou esse decreto, comecei a receber e-mails de cobrança. E aí eles não atendiam mais em nenhum canal.”

Enquanto isso, dezenas de consumidores que se reconhecem como vítimas da Áquila se mobilizam virtualmente. No total, seis deles, que moram em cidades diferentes no Brasil e no exterior, disseram à reportagem não receber respostas ao longo de semanas ou meses por canais oficiais de atendimento, incluindo email, ligações telefônicas e mensagens por aplicativo. Ou, então, que obtiveram apenas declarações vagas e inconclusivas ao questionarem sobre o impacto das novas regras.

Permanecem pendentes pedidos de rescisão de contratos, devolução de documentos originais ou de esclarecimentos sobre a viabilidade dos seus processos.

“Não tenho mais a certeza do direito garantido, que eu tinha quando a legislação não era aprovada”, diz Felipe Almeida, de Taubaté. Um contrato estabelecia o pagamento de 20 mil reais em 2023 para o reconhecimento da cidadania da sua esposa e filho, bisneta e tataraneto de emigrado italiano, com a documentação necessária sendo reunida até dezembro passado.

Problemas em cadeia

A Áquila acumula também 219 reclamações dos últimos seis meses no Reclame Aqui, em comparação a 209 em todo o ano passado. O Procon do Paraná recebeu ainda quatro queixas contra a empresa desde o decreto, somadas a três anteriores em 2025 e outras três em 2024 e 2023.

“Muitos dos requerentes estão pagando em boletos bancários, em 36 vezes. As pessoas estão pagando por uma coisa que, muito provavelmente, não vamos ter mais,” afirma Vinícius da Rós, um dos clientes que se mobilizam virtualmente.

Já contra a Nostrali, foram 26 reclamações no Procon do Paraná, todas no mesmo dia em fevereiro e por pessoas diferentes. Consumidores alegaram ter sofrido cobrança de tarifas não informadas, cobrança por serviço não fornecido e propaganda enganosa. No Reclame Aqui, a empresa reúne 121 reclamações, das quais 99 foram abertas nos últimos seis meses, frequentemente citando perda de comunicação com representantes.

Em contato com a reportagem, a Nostrali Cidadania Italiana não se pronunciou. Já a Áquila Global Group atribuiu, em nota, as crescentes dificuldades à lentidão dos órgãos públicos da Itália, à recente mudança legislativa e à natureza da sua atividade.

“Os atrasos impactam diretamente toda a cadeia produtiva, gerando mais trabalho operacional, aumento de reclamações e demandas de esclarecimento, além de potencialmente afetar a imagem institucional, com consequente perda de receita e necessidade de ajustes no quadro de colaboradores”, disse o comunicado.

A assessoria afirmou também que a maior parte das reclamações se refere a clientes que já tiveram a cidadania reconhecida, sem comentar os casos apurados pela reportagem. E, ainda, que trabalha para agilizar o atendimento e adota as medidas legais cabíveis contra “manifestações inverídicas, caluniosas ou difamatórias”.

Outras empresas do setor alvo de reclamações semelhantes incluem a Eu na Europa, Cidadania4U e Cidadania Já. Juntas, elas somam 369 reclamações nos últimos seis meses no Reclame Aqui. Nenhuma respondeu a pedidos de comentário.

Vendendo promessas

Continua, entretanto, a captação de clientes em parte da fábrica da cidadania italiana. A aposta para manter a roda do setor girando é vender a promessa de sucesso da contestação a nível judicial da constitucionalidade da nova legislação italiana. No entanto, a tese jurídica ainda deve ser testada, e não há garantia de aprovação perante o magistrado.

A DW contatou em maio e junho os canais de atendimento ao cliente de oito empresas de assessoria jurídica, expressando interesse nos serviços atualmente disponíveis para bisnetos de italianos. Sete delas indicaram, num primeiro contato, aceitar novos clientes de quarta geração, apesar da legislação vigente, incluindo a Áquila e a Nostrali.

Por outro lado, durante a apuração, a DW constatou que ao menos uma empresa congelou pagamentos, e outras duas não aconselham o fechamento de novos contratos enquanto durar a incerteza jurídica.

O Procon de São Paulo explica que a mudança na legislação dá ao consumidor o direito de terminar contratos com o setor. Os serviços efetivamente executados até o momento do decreto, entretanto, podem ser abatidos dos pagamentos a serem restituídos.

“O fato de hoje, com contrato em vigência, as regras estarem completamente alteradas por fatores que não são de responsabilidade do consumidor não pode ser elemento para a empresa atribuir responsabilidade, inclusive ônus, ao consumidor”, explica Patrícia Alvarez, diretora de assuntos jurídicos do Procon-SP. Segundo ela, a mudança legislativa faz parte do risco da atividade do prestador de serviço.

Briga na Corte Constitucional

O reconhecimento dos ítalo-descendentes será tema de audiência na Corte Constitucional da Itália em 24 de junho. Em jogo estarão questionamentos quanto à constitucionalidade da cidadania jus sanguinis (por descendência) sem limites, levantados por quatro tribunais onde correm processos pelo reconhecimento da cidadania.

Os processos dizem respeito a 23 brasileiros e 12 uruguaios, explica o advogado italiano Marco Mellone, que representa 31 dos 35 requerentes. A decisão deverá servir de argumento para manter ou derrubar as restrições introduzidas pela nova legislação.

“Na minha opinião, tem muitos motivos para essa lei não poder ser considerada em acordo com Constituição italiana”, afirma Mellone. “Antes de tudo, o fato de que pretende tirar um direito que a lei anterior estabelecia desde o nascimento, e a lei não pode ser retroativa.”

Observadores argumentam que, diante do cenário de incerteza, é momento de cautela para ítalo-descendentes que cogitam se comprometer com novos investimentos para a obtenção da cidadania.

“Tenho dito para as pessoas que aguardem esse julgamento. Vejo propagandas de quem está se aproveitando e dizendo aos clientes que não desistam”, diz Walter Petruzziello, membro do conselho de presidência do Conselho Geral de Italianos no Exterior, instituição que representa ítalo-descendentes. “Existem tantas empresas que já não se sabe mais quantas são sérias ou não.”

Por enquanto, uma petição online contra a mudança nas regras já acumulou assinaturas de 133 países, sendo o Brasil o primeiro deles, com mais de 63 mil assinaturas, segundo a plataforma Change.org.

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