Insegurança jurídica e o desafio de garantir sustentabilidade ao setor de saúde

O imbróglio que envolve a judicialização da saúde tem ganhado cada vez mais contornos de uma quebra de braço entre a Justiça e as operadoras de planos e seguros de saúde, que em nada beneficiam usuários tanto do serviço público quanto privado de saúde no Brasil. Segundo dados de janeiro do Painel de Estatísticas Processuais de Direito à Saúde, havia 869.271 ações judiciais relacionadas à saúde pendentes de julgamento. Dessas, 518.811 se referem à saúde pública e 365.286 à saúde suplementar.

Apenas em 2024, foram ajuizados 663.864 novos processos, o que representa um crescimento de 16,8% em relação a 2023. Somente nos dois primeiros meses de 2025, houve um incremento de 18,7% nas novas demandas da saúde suplementar, em comparação ao mesmo período do ano anterior.

De acordo com levantamento da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), com base em dados da Agência Nacional de Saúde (ANS), o custo com despesas decorrentes da judicialização na saúde suplementar chegou a R$ 6,8 bilhões somente em 2024. Já nos últimos cinco anos, o aumento foi de 183%, o que evidencia a ameaça à sustentabilidade do setor, além de sobrecarregar o Judiciário.

“Quando falamos em judicialização, é importante diferenciar dois cenários: a judicialização devida, que nasce de conflitos legítimos entre consumidores e operadoras, e a judicialização indevida, também chamada de predatória. Essa última tem crescido de forma preocupante. São ações padronizadas, muitas vezes movidas com o objetivo de obter coberturas que não estão previstas em contrato. É nesse ponto que surge a insegurança jurídica no setor”, afirma Ana Amélia Bertani, diretora jurídica da Abramge.

A Federação Nacional de Saúde Suplementar (Fenasaúde) – que fala em nome de empresas como a Bradesco Saúde – considera que um dos principais incentivos à judicialização foi a edição, em 2022, da Lei n° 14.454, que tornou meramente exemplificativo o rol de cobertura definido pela ANS. Essa mudança legal gerou mais insegurança jurídica, suscitando mais demandas à Justiça envolvendo planos de saúde. “A judicialização prejudica os próprios beneficiários na medida em que a má alocação de recursos em tratamentos muitas vezes ineficazes acaba tendo que ser repassada na forma de maiores preços para todos”, diz o diretor-executivo da FenaSaúde, Bruno Sobral.

Composta por 340 cooperativas que atuam de forma independente, em diferentes localidades, portanto, com diferentes operações e demandas judiciais específicas, a Unimed do Brasil afirmou em comunicado para a Dinheiro que, no geral, as incertezas quanto ao marco regulatório do setor têm aberto portas para o crescimento da judicialização contra planos de saúde. A alta no número de processos dificulta as provisões orçamentárias e a precificação, tem o potencial de comprometer a capacidade dos planos de saúde de fornecer os serviços e pode impactar ainda nos reajustes de mensalidades, prejudicando o coletivo de beneficiários e tornando os planos menos acessíveis.

“Para conter a escalada da judicialização, a Unimed do Brasil defende que é fundamental garantir a segurança assistencial, jurídica e econômico-financeira para os contratantes de planos de saúde e para as operadoras, por meio de um marco regulatório com clareza e previsibilidade nas regras para o setor. A Unimed do Brasil também atua incentivando a solução alterativa de conflitos, como a mediação, sendo reconhecida como Empresa Amiga da Justiça por dois anos consecutivos, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo”, trouxe a nota.

Representantes do setor atribuem a incidência de fraudes e o excesso de litigância indevida ao cenário de judicialização predatória. Ainda que registre um número relativamente baixo de reclamações nos órgãos oficiais de defesa do consumidor, é um dos segmentos mais judicializados. O portal Consumidor.gov.br, do Ministério da Justiça, mostra que as operadoras de planos de saúde e administradoras de benefícios ocupam apenas a 18ª posição entre os segmentos mais demandados, o que equivale a apenas 1,6% do total de queixas registradas.

Ainda de acordo com dados da Fenasaúde, entre 2022 e 2024, o total de novos casos protocolados na Justiça contra a saúde suplementar dobrou, atingindo 301 mil no ano passado. No mesmo período, os processos contra o SUS aumentaram bem menos, 46%, chegando a 370 mil. A saúde suplementar já representa 45% dos processos novos, embora o setor cubra apenas 25% da população brasileira. No ritmo atual, em um ou dois anos, haverá mais processos abertos contra os planos de saúde do que contra o SUS.

Prejuízo também para o Judiciário

Para a Fenasaúde, o volume de processos relativos à saúde – pública e privada – cresce num ritmo que já motivou iniciativas da cúpula do Judiciário, que editou no ano passado as súmulas 60 e 61, a estabelecer critérios para o acesso a medicamentos pela via dos tribunais. As novas diretrizes valem, por ora, para o SUS, mas deveriam ser estendidas para a saúde suplementar.

É neste sentido que a Justiça, por sua vez, apresenta sua defesa e as ações que têm implementado para mitigar o problema. O Brasil, segundo o presidente do Conselho Nacional de Justiça, ministro Luís Roberto Barroso, é um dos países com o maior nível de demandas judiciais na área de saúde e essa é uma questão que precisa e vem sendo enfrentada pela Justiça não apenas pela quantidade de casos, mas principalmente por suas complexidades. As principais causas dessas ações – mapeadas pelo Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (Fonajus) – são voltadas para o acesso a medicamentos de alto custo, ou ainda para novos tratamentos e terapias, e, em número menor, também para questões contratuais.

“Esse é um dos temas mais difíceis e complexos com os quais o Poder Judiciário tem se deparado, pelo volume, pelas escolhas trágicas envolvidas. Ninguém deseja que a saúde seja administrada pelo Poder Judiciário, mas ao mesmo tempo é papel dele atender a direitos fundamentais, inclusive o direto à saúde quando não esteja sendo devidamente assistido”, afirmou Barroso em evento do CNJ para comemorar os 15 anos do Fonajus.

Daiane Nogueira de Lira, conselheira e presidente do Fonajus, do CNJ, destacou ainda que o aumento do volume de demandas relacionadas à saúde tem sido um problema crescente, que desorganiza o sistema como um todo, e que, ao longo desses anos, tem sido feito um trabalho de conscientização do Judiciário e da sociedade voltado para a medicina baseada em evidências. Mas esse cenário tem se tornado cada vez mais complexo em razão do avanço tecnológico e de tratamentos na área médica, assim como do envelhecimento da população, que afetam diretamente a demanda por medicamentos e serviços.

“É preciso contar com especialistas em áreas diversas da saúde para auxiliar a tomada de decisão do Judiciário. Isso amplia muito a complexidade do processo”, disse, explicando como tem se dado o trabalho o e-NatJus (repositório de pareceres especializados que está disponível para magistrados e operadores do Direito). “A judicialização não é a forma convencional de se resolver essas questões. Se está havendo judicialização, instâncias que deveriam estar funcionando não estão. Vivemos uma epidemia de litigiosidade da saúde e estamos pensando em como superá-las.”

No Brasil, o direito à saúde é garantido pela Constituição, mas somente o Serviço Único de Saúde (SUS) não teria como atender à toda a população. De acordo com Daiane, esse cenário no qual a saúde suplementar – que alcança cerca de 50 milhões de brasileiros – tem precisado criar cada vez mais demandas com seus altos custos, afugentando clientes, pode acabar com impacto na saúde pública. “A judicialização por si só não é um problema, mas com índices tão elevados cabe ao CNJ saber o porquê disso”, afirmou. Para isso, trabalha-se com muita ação da defensoria pública, pesquisas para verificar causas mais especificas de determinadas doenças, análise de forma mais aprofundada e muito trabalho com a resolução inter judicial de conflito, antes de chegar ao poder Judiciário.

Critérios mais técnicos

Por isso, é essencial que a Agência Nacional de Saúde (ANS) tenha ações preliminares de notificação e fortalecimento da atuação junto às operadoras de saúde. “Trazer para a saúde suplementar a possibilidade de os magistrados terem apoio de técnicos especializados aumentará a segurança jurídica tanto para a saúde pública quanto para as operadoras”, complementou Daiane.

Segundo ela, hoje a celeridade de evolução do rol da ANS é importante, mas o
Judiciário tem que andar junto, não pensar apenas na questão financeira. As ações têm que estar embasadas em posicionamentos científicas. Ação direta de inconstitucionalidade, a judicialização vai além da legislação. “A saúde privada é um sistema muito robusto, por isso é importante pensar na saúde como um todo. É um modelo desenhado constitucionalmente. Temos um sistema de saúde desafiador, complexo e com diferenças regionais e sociais muito gritantes.”

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