Típico de clima frio e úmido, pinhão é coletado por famílias na Mata Atlântica e começa a cair no gosto de consumidores nos Estados Unidos, Portugal e China.Organizadas em pilhas igualmente distribuídas, as sacas amarelas estão prontas para embarcar rumo aos Estados Unidos. Cada uma delas acomoda vinte quilos devidamente selecionados de pinhão, e estampa o selo confeccionado há pouco tempo: “Product of Brazil”.
A venda para o exterior da semente da araucária é novidade na Serra da Mantiqueira, cadeia montanhosa entre os estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. O pinhão, de grande importância histórica e cultural, tinha pouco valor econômico até recentemente. Pouco a pouco, a iguaria começa a ser degustada por americanos, portugueses e chineses.
“É o segundo ano que exportamos. Os chineses queriam mais, mas a gente já tinha compromisso com outros compradores. Vamos nos organizar para o ano que vem mandar para lá também”, diz o comerciante que prefere não ter seu nome identificado na reportagem, apontando para o produto embalado, exportado por R$ 12 o quilo.
O interesse estrangeiro pelo alimento que cai da árvore a cada outono brasileiro chama a atenção dos jovens que cresceram perto do pinhão. Muitos querem levar o negócio para frente e criar uma cadeia sustentável, com geração de renda e preservação da araucária, espécie de árvore em risco do país.
“Nós organizamos as atividades entre as famílias do campo e da cidade. Agora, a gente vê filhos dos mais velhos se interessando mais e queremos despertar mais a atenção também”, diz Carlos Jobson de Sá Filho, à frente da Associação de Vendedores de Pinhão de Campos do Jordão, do lado paulista da Mantiqueira.
Da Mata Atlântica para o mundo
Aparecida Rodrigues de Sá, 64 anos, nunca imaginou que o pinhão manuseado por ela chegaria tão longe. Ela é uma das centenas de coletoras e coletores que andam pela Mata Atlântica fazendo a colheita. Na região de Campos do Jordão, eles esperam a pinha cair dos galhos de até 40 metros de altura, espalhar de cinco a 150 sementes pelo solo para encher as sacolas vazias que levam para a floresta.
“Este ano está mais atrasado. Ano passado, a essa hora, já estava cheio de pinhão no chão”, diz dona Cida, como é conhecida, durante uma manhã na mata. Naquele mesmo ponto, há um ano, avistou uma família de onças parda no ano passado, conta à DW.
O marido, a cunhada e dois amigos acompanham dona Cida pelo terreno íngreme, a 1600 metros de altitude. Ela já coletou duas toneladas, e espera acumular mais uma até o fim da temporada.
O pinhão completa o orçamento da família há trinta anos. Foram os pacotinhos da semente vendidos nas ruas que ajudaram a comprar roupa para os três filhos pequenos, custear o estudo deles e a construção da casa. Carlos Jobson, o caçula, administrador e pós-graduado em administração pública – que agora faz outra graduação, em Educação Física – acompanhava a mãe desde pequeno.
Com as sacolas quase cheias, Vanderlei Honório diz que o pinhão sempre foi uma fonte de renda importante para famílias locais. Na temporada de 2025, ele já armazenou duas toneladas, remessa que vendeu para Portugal.
“Ele não é importante só para gente, mas para muitos animais que se alimentam da semente, e para a renovação da floresta”, diz o coletor, caminhando entre as pinhas caídas.
No Sul do país, onde há áreas maiores de floresta de araucária, surgem também as primeiras experiências de exportação de pinhão. No Rio Grande do Sul especificamente, a previsão é que 860 toneladas sejam coletadas, segundo estimativas da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do estado (Emater).
Sobrevivente desde os dinossauros
Emblemática, a araucária é encontrada no planeta desde os tempos dos dinossauros. A espécie surgiu há 200 milhões de anos, no período Jurássico, segundo estudos de cientistas, sobreviveu a intempéries, e agora está seriamente ameaçada. Os séculos de desmatamento para agricultura, corte para aproveitamento da madeira e expansão urbana empurraram a árvore para o perigo da extinção.
Típica do clima frio e úmido, a araucária pode ser encontrada a partir de 500 metros de altitude nos estados do Sul. Na Mantiqueira, ela começa a aparecer só depois dos mil metros de altitude, explica Mariana Carvalho, pesquisadora visitante na Universidade da Antuérpia, Bruxelas, ligada à Universidade de São Paulo, USP.
“Cientificamente falando, a presença da araucária na Mantiqueira é natural. Estudos que fizemos com fósseis de pólen mostram que ela está lá há pelo menos 20 mil anos, ou seja, antes de os humanos estarem presentes nesta parte do continente”, afirma Carvalho.
A espécie e o pinhão foram vitais já para os primeiros habitantes do país. Pinturas rupestres encontradas no Paraná recentemente ilustram, entre outros elementos, araucárias. Segundo o estudo publicado por Henrique Simão Pontes, o painel pode ser de autoria de indígenas do grupo Jê, há aproximadamente três mil anos.
“É uma espécie muito importante. Por isso estudamos como ela se adaptou às mudanças climáticas do passado para entender o que pode acontecer no futuro, neste contexto de aumento de temperaturas que o planeta vive”, comenta Carvalho.
Pegar e deixar
No Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, escalar araucárias para o corte da pinha fez parte da tradição de muitas famílias. A prática dificulta a reprodução da espécie, pois as sementes são retiradas antes de chegar ao solo e serem dispersadas por animais. Por conta disso, colheita, venda, transporte e armazenamento do pinhão são proibidos antes de abril, época em que o pinhão maduro geralmente começa a cair.
Nesta parte do país, o corte indiscriminado das araucárias, que perderam mais de 97% de sua cobertura original, trouxe um outro problema: os exemplares maiores, com genética mais forte, foram quase todos exterminados.
“Como os remanescentes estão isolados, isso impede o fluxo gênico para que haja variabilidade genética da espécie. Isso contribui para que ela perca a habilidade de sobreviver dentro do contexto das mudanças climáticas”, alerta Anke Salzmann, engenheira florestal e gerente de projetos da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza.
No alto das montanhas de Campos do Jordão, dona Cida comemora o aparecimento de novas árvores na área onde costuma coletar. “Eu amo andar aqui. Sinto tranquilidade, paz, eu me sinto acolhida, como se fosse minha casa”, diz, sentada no chão da floresta.
Um alimento rico e tradicional
O pinhão é uma fonte rica em calorias, oferece ainda fibras e minerais que ajudam a controlar a pressão arterial e colesterol, apontam pesquisas feitas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). A semente ganha espaço como ingrediente na culinária, mas já era consumida por povos indígenas há milhares de anos.
Suzana Reis tenta transformar o pinhão vasculhando o passado de sua família. Neta de uma indígena Puri, povo presente no Sudeste antes da chegada dos colonizadores, ela se lembra de assistir à avó fazendo farinha da semente da araucária.
“Eu comecei a testar e produzo hoje uma farinha natural, sem adição de elementos artificiais, a partir do pinhão que vem daqui mesmo, dos coletores da região”, diz a empresária, baseada em Campos do Jordão.
Nos dias em que não sai para coletar, dona Cida limpa e separa as sementes em embalagens menores, vendidas em pequenas bancas espalhadas pela cidade. Ali param veículos que vêm de pontos distantes, como Brasília e Belo Horizonte.
O filho dela, Carlos Jobson, vê um futuro promissor, mas espera que a tradição se mantenha. “O ato de catar pinhão tem raízes culturais. As pessoas se reuniam em torno da fogueira para sapecar e comer pinhão. É uma ação de preservação e de contato com a natureza”, diz à DW.
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