‘Colocaram uma arma na cabeça da minha mãe e levaram meu irmão’: Há 40 anos, crianças eram tiradas de casa à força e colocadas para adoção

crianças santos dumont

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Em última foto com a família completa, Maria Concebida, 13, é cercada da mãe, Maria Ricardina, e dos irmãos Sebastião, 9, e Paulo César, 4, levado à força para adoção (Foto: Arquivo pessoal)

Era 23 de dezembro de 1986, véspera de Natal, na cidade de Santos Dumont, com seus cerca de 40 mil habitantes. A memória de Maria Concebida Marques, na época com 13 anos, é de que tudo começou com uma correria em sua casa, com seus irmãos de 9 e de 4 anos tentando escapar dos comissários de polícia que tinham entrado sem pedir licença. Não conseguiram subir juntos o morro que dava acesso para outra rua. Essa foi a última vez em que ela viu o irmão mais novo, Paulo César. “Colocaram uma arma na cabeça da minha mãe e levaram meu irmão. Não teve como reagir muito, mas ela tentou. Prenderam ela por algumas horas. E sumiram com as crianças que estavam dentro do camburão”, relembra.

A história de sua família não foi isolada — faz parte dos 176 casos de adoção à força que atingiram a cidade, durante os anos de 1985, 86 e 87, quando uma quadrilha de tráfico de crianças atuava no local. Quarenta anos depois, esse caso rendeu uma decisão na justiça favorável à indenização de três dessas famílias, incluindo a de Maria Concebida, pelos danos causados pelo Estado e pela União. Mas essa história ainda está longe de ter um ponto final: seja porque ainda não se sabe o que aconteceu com muitas dessas crianças, seja pela sensação de impunidade que ainda paira na cidade ou ainda pela luta dos familiares que sonham com outro desfecho.

Mesmo que nem todos conheçam esse crime, ele foi noticiado pela imprensa e teve atenção nacional, mostrando o envolvimento de agentes públicos, religiosos e advogados da região em um esquema judicial fraudulento. “Essa é uma história que, se chegar aqui no meu bairro, todo mundo conta. Mas é uma história que ficou só nos bastidores”, conta Maria Concebida, que hoje tem 53 anos. Quando seu irmão foi levado, ela ainda não sabia que aquele crime estava sendo praticado com várias famílias da região, incluindo a de Heloísa da Silva e a de Isaura Sobrinho, que estão junto com ela no processo e que tiveram, cada uma, três crianças levadas para fora do país.  “Ficamos sem saber a quem procurar, porque era a Justiça que estava envolvida nisso. (…) Não foram 3 ou 4 crianças. Foram dezenas, centenas. Como não fizeram uma investigação?”, questiona. Na época, ela conta que sua mãe, Maria Ricardina, foi declarada incapaz por um médico que fazia parte dessa organização criminosa. Muitas dessas mulheres, de fato, enlouqueceram depois de viverem essa tragédia, e ainda lidam com as sequelas deixadas.  

O momento em que isso aconteceu foi justamente o da transição da ditadura militar para a democracia e, ao contrário de crimes que aconteceram no período envolvendo filhos de presos políticos, o caso de Santos Dumont visou outro perfil: eram famílias pobres e com pouco esclarecimento. “Nós não tínhamos quem lutasse por nós”, diz Maria Concebida. Apesar do depoimento de sua família e de algumas outras ter sido escutado nos anos seguintes pela Polícia Federal de Juiz de Fora, não houve notícias sobre punições para os envolvidos com o caso. O sentimento de injustiça continuou acompanhando as vítimas, até que, em 2017, procuraram o advogado Flávio Tavares. Ele propôs que abrissem um processo que responsabilizava o Estado e a União por crime contra a humanidade, algo que não prescreveria apesar de todos os anos que já tinham se passado. “Quem cometeu esse crime eram agentes do estado, então entrei com processo contra o Estado e a União em busca de uma reparação para essas pessoas (…) Quando conversei com elas, elas já vinham de um sofrimento de muitos anos. Poucas acreditavam que teriam algum direito ou conseguiriam algo”, explica o advogado.

Maria Concebida, por conta própria, tentou justiça por muitos anos. No processo de mais de 500 páginas, há registro de cartas enviadas para o então presidente do Brasil, em 2008 e 2009, pedindo atenção para o caso. Em um dos trechos, questiona: “Pergunto ao senhor com todo respeito, onde está a justiça desse país?”. Ela se tornou uma das principais representantes dessa luta entre a comunidade, por também ser mais jovem que as mães, que com o tempo foram se tornando idosas e, em muitos casos, faleceram. “É uma história muito minha, porque a minha mãe ficou parada naquele tempo, naquela cena de 40 anos atrás. Hoje ela necessita de cuidados, e a gente não teve nenhum amparo do sistema, de nenhum órgão público”, conta, sobre a mãe, que faz 79 neste mês de maio. A passagem do tempo já deixou muitas marcas: além dela, que foi citada no processo pela perda do vínculo com o irmão, uma das mães, Heloísa, já faleceu sem ver um desfecho para essa história; Isaura, por sua vez, atualmente está em uma casa de repouso, também sem saber o que irá acontecer.

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Reencontro

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Paulo César tinha 4 anos quando foi levado para França (Foto: Arquivo pessoal)

Durante todos esses anos, o maior desejo de Maria Concebida era reencontrar seu irmão. Ela conseguiu descobrir, através dos documentos de adoção, que ele tinha ficado com uma família na França e seguia com o nome de Paul Rochi. Então, conseguiu contato com a Interpol, que o localizou e afirma ter contado a história da adoção para ele. Em um primeiro momento, ele não teria feito contato com a família, mas, anos depois, fez uma solicitação de amizade no Facebook com Maria Concebida. Assim que viu a foto, a irmã o reconheceu — para ela, se trata de uma marca que ficou, e que ela era capaz de reconhecer com o coração. “Eu não falo o idioma dele e nem ele o meu. Ele escrevia mensagens e eu traduzia no google. Pelas imagens que eu via, ele tinha uma vida razoável. Ele não tem contato com a família adotiva, não é casado e nem tem filhos”, conta.

Já com barreiras intransponíveis na relação entre os dois, ela também viu que o irmão sofria não só com esse trauma, mas também com a falta de amparo do estado e com o envolvimento que teve como alistado na guerra do Afeganistão. Eles perderam contato novamente há um ano, e ela não tem mais notícias dele. “A minha esperança é poder encontrar ele frente a frente. Não tem dinheiro no mundo que vai pagar isso. Ter vivido tão pouco com a gente, ter sido tirado daquela forma…(…) Não quero ir para a França como turista, quero ir amparada, para realmente encontrá-lo”, diz. Com esse reencontro, frente a frente, ainda pendente, ela lamenta todos os anos esperando o irmão voltar. “É uma história que não tem ponto final. Meu irmão não morreu. Ele não foi enterrado. Por mais que a morte seja doída, é um encerramento. Ele ainda é uma ferida aberta em mim.”

Apesar de ter ficado tão distante do irmão, sendo separada por outro continente, a família de Maria Concebida — e também as outras envolvidas no processo — conviveram durante anos com os envolvidos nesse esquema ilegal de adoção. “Mesmo vivendo tudo que a gente viveu, toda a dor, ainda convivíamos com as pessoas em Santos Dumont que fizeram isso. Não é segredo, são nomes conhecidos. Estão nos jornais. E alguns deles ainda estão vivos.  É uma sensação de impunidade enorme. (…) As provas sempre estiveram aqui, na cara de todo mundo, e ninguém fez nada”, relembra ela. Sua mãe, que hoje está com a saúde debilitada, é incapaz de reconhecer o filho nas fotos do Facebook, tantos anos depois. “Minha mãe ficou anos e mais anos olhando para a porta, esperando meu irmão voltar. Ela está presa nessa cena há 40 anos. Ela não sabe que aquele homem que estava falando com ela era o Paulo César, não reconhece”, afirma.

 

Próximas etapas na justiça

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Flávio Tavares, Maria Ricardina e Maria Concebida estão na justiça desde 2017 (Foto: Arquivo pessoal)

Com o reconhecimento da Justiça Federal em relação à responsabilidade do Estado e da União por violações contra as três mães que tiveram seus filhos levados à força para adoção fora do país, a expectativa de Flávio Tavares é que o caso possa abrir precedentes para que mais famílias recorram à justiça. No entanto, ele destaca que ambos os órgãos podem recorrer da decisão, que na primeira instância tinha sido favorável. Além de acompanhar essas famílias, ele também revelou o desejo de procurar uma reparação para as crianças que foram retiradas à força de suas casas e de suas famílias. “Quem sabe o que aconteceu com muitas dessas crianças? Como foi o caminho que elas trilharam depois que foram embora daqui? Já sabemos que uma dessas crianças sofreu abuso dos pais que a adotaram até a adolescência, depois se envolveu com drogas. (…) Essas pessoas não falam nem português. São pessoas que perderam suas raízes, suas origens, seus laços familiares”, reflete.

Muitas dessas pessoas, como ressalta, ainda não sabem essa história. “Hoje, adultos, vários ainda acreditam que foram adotados porque os pais os maltratavam ou os abandonaram, foi isso que foi plantado na cabeça dessa criança desde que era pequenininha”, diz. Ele também já conversou com mães que dizem que, na época, pensavam que o estado estava certo, que era porque elas eram pobres, então não tinha condições de cuidar dos filhos — e que continuaram se culpando durante muitos anos. “A gente não pode deixar de considerar que aquela época favoreceu a prática desse crime. Era um momento em que as pessoas tinham menos liberdade. (…) Ao invés de proteger as pessoas, um estado mais forte serviu para proteger aqueles bandidos que estavam a serviço do estado cometendo crimes”, diz.

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