Bombas e desalojamento, preços exorbitantes, carência de alimentos e combustível. Ocupadores geram fome não só sustando fornecimentos, mas também impedindo que palestinos cultivem ou pesquem seu próprio sustento.Após quase 19 meses de guerra, a população a Faixa de Gaza está esgotando seus recursos para lidar com a situação, e encara com apreensão com o que está pela frente. O bloqueio de Israel a todos os fornecimentos humanitários e comerciais já dura dois meses, e seus bombardeios prosseguem por toda a área.
“A realidade em Gaza é indescritível”, confia Ahmad Qattawi, por telefone, à DW. “Estamos vivendo uma tragédia, tentando sobreviver sem sequer saber se vamos conseguir. Talvez a gente sobreviva, mas as nossas almas já morreram muito tempo atrás.”
O medo das bombas é um problema, o outro é encontrar o que comer: “Estamos consumidos pela procura diária de comida, estocando o que dá, para os dias seguintes. Nós comemos frugalmente, e o máximo possível.”
Com as padarias fechadas, o custo dos alimentos básicos nas alturas e as fronteiras bloqueadas, organizações humanitárias têm advertido insistentemente que o risco de desnutrição é alto nesse território palestino. Os mercados ainda vendem pequenas de quantidade de legumes e verduras, mas a maioria dos residentes não tem como comprar.
Um quilo de tomate, ingrediente indispensável da cozinha palestina, custa agora 30 shekels (R$ 47), contra 1 a 3 shekels de antes da guerra; para um quilo de açúcar é preciso desembolsar 60 shekels. Além da alta de preços, muitos moradores não têm mais fonte de renda.
“Nossas vidas agora dependem inteiramente de comida enlatada, com a rara exceção de alguns legumes”, explica Qattawi, de 44 anos, acrescentando que cozinhar é um desafio, devido à carestia de gás: “Não há madeira para fazer fogo, então a gente queima o que encontra, roupas, sapatos, qualquer coisa. Assim é o nosso dia a dia.”
Pessoal humanitário de mãos atadas
Também a partir da Cidade de Gaza, o diretor da Rede de Organizações Não Governamentais Palestinas (PNGO), Amjad Shawa, resume: “Nunca estivemos numa situação assim, na história de Gaza. É uma catástrofe. Temos bombardeios aéreos, artilharia, ataques contra acampamentos, contra abrigos. Nenhum lugar é seguro. E todo mundo está morrendo de fome. Falo até pessoalmente: a gente não sabe o que comer, não tem quase nada.”
Ele descreve a sensação de estar sendo cada vez mais encurralado, sem perspectiva de um fim. “E o pior para nós, enquanto pessoal humanitário, é sentir que estamos de mãos atadas, que não temos nada para dar. A gente faz o máximo para levar alguma esperança aqui e ali, mas, por outro lado, somos parte da comunidade e não temos como nos isolar da situação.”
O Escritório das Nações Unidas para Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) acrescenta que o sistema de saúde está “à beira do colapso, sobrecarregado pelas urgências em massa, e paralisado de modo crítico pelo bloqueio total que impede a chegada de remédios, vacinas e equipamento médico”.
Recentemente, o Programa Alimentar Mundial (WFP) anunciou que esgotara seus estoques para Gaza, tendo distribuído os últimos suprimentos para as cozinhas comunitárias que servem refeições básicas aos mais vulneráveis, e a farinha restante para as padarias.
“Em 31 de março, todas as padarias mantidas pelo WFP fecharam, devido à falta de farinha de trigo e de combustível de cozinha”, anunciou a agência das Nações Unidas. Na mesma semana esgotaram-se seus pacotes alimentares para famílias, contendo rações para duas semanas. O Programa preocupa-se ainda com a séria carência de água potável, e também a de combustível, que força os residentes a vasculharem por objetos com que fazer fogo para cozinhar.
Cessar-fogo passageiro
À medida que os suprimentos escasseiam, a preocupação de como sustentar os entes queridos suplanta tudo mais, comenta Mahmoud Hassouna, de 24 anos. Atualmente morando em Khan Younis, no sul de Gaza, ele e sua família foram desabrigados pelas bombas israelenses no início da guerra, em 2023.
“Estamos novamente vivendo de comida enlatada. Não temos dinheiro para comprar legumes e verduras, os preços no mercado são exorbitantes.” Ele passa o dia em volta da casa improvisada, procurando sobretudo madeira para fazer fogo com que a mãe possa preparar as refeições. Uma tarefa difícil, pois a maioria das árvores ou foi derrubada ou destruída nos bombardeios. Alguns se arriscam a entrar nas casas destruídas, à procura de alguma porta ou outro objeto de madeira.
Hassouna está também encarregado de buscar água potável e meios de carregar os telefones celulares. O medo dos ataques militares e de desalojamento tornou-se constante: “Passei dois anos da minha vida debaixo de bombas, assassinato e morte. Eu nem me reconheço mais.”
O cessar-fogo que vigorou de janeiro ao começo de março trouxe algum alívio à população de Gaza, dando às ONGs humanitárias tempo para suprir seus armazéns. No entanto a situação voltou a se deteriorar em 18 de março: depois da primeira fase de trégua e troca de reféns, as negociações pararam, e Israel quebrou o cessar-fogo. Antes, o país já tinha ordenado o fechamento de todas as passagens de fronteira e sustado as entregas humanitárias e comerciais para Gaza.
Israel lançou a atual guerra em seguida ao ataque de 7 de outubro de 2023 em seu território, quando o grupo extremista palestino Hamas fez mais de 1.200 vítimas, inclusive civis, e levou cerca de 250 reféns. Segundo fontes israelenses, 59 ainda estariam em Gaza, embora se calcule que nem a metade ainda esteja viva.
As Forças de Defesa Israelenses (IDF) retaliaram imediatamente com uma operação militar em grande escala e uma ofensiva por terra em Gaza. Segundo o Ministério da Saúde local, controlado pelo Hamas, o número de mortos do lado palestino já passa de 52 mil, além dos milhares que se acredita estarem soterrados sob os escombros.
Israel acusado de crimes de guerra
O atual bloqueio é parte do que as autoridades de Israel denominam “estratégia de pressão máxima”, visando primeiro forçar o Hamas a liberar os reféns restantes durante um novo cessar-fogo temporário, para, por fim, derrubar o grupo. Israel tem acusado os militantes de roubarem os bens humanitários para uso próprio.
A mídia israelense noticia que o gabinete de segurança estaria em vias de aprovar planos operacionais para ampliar a atual ofensiva militar, inclusive com a convocação de dezenas de milhares de reservistas. O Hamas tem rechaçado todos os apelos para se desarmar, insistindo num pacto que garanta o fim da guerra.
Grupos de direitos humanos e a Organização das Nações Unidas acusam Tel Aviv de usar como arma política a ajuda humanitária e alimentar, num potencial crime de guerra contra todos os 2,2 milhões de habitantes da Faixa de Gaza.
Em comunicado no início de maio, o subsecretário-geral para Assuntos Humanitários e coordenador de Socorro de Emergência da ONU, Tom Fletcher, advertiu: “As leis internacionais são inequívocas: enquanto potência ocupadora, Israel deve permitir a entrada de ajuda humanitária. A assistência, e as vidas civis que ela salva, não podem nunca ser moeda de barganha.”
Ao longo do conflito, a população de Gaza tornou-se quase inteiramente dependente dos fornecimentos humanitários e comerciais de fora. O deslocamento humano constante e a criação de uma ampla zona-tampão pelas IDF no norte, ao longo da fronteira leste e no sul, impede aos palestinos o acesso às terras aráveis mais férteis de Gaza.
“Em termos simples, Israel não está só impedindo que a comida chegue a Gaza, mas também engendrou uma situação em que os palestinos não podem cultivar nem pescar seus próprios alimentos”, comentou em coletiva de imprensa Gavin Kelleher, funcionário do Conselho Norueguês para Refugiados (NRC), ao retornar de Gaza.
Os moradores locais relatam ainda incidentes de saque de armazéns, segurança interna frágil e caos generalizado durante os bombardeios israelenses. Em 1º de maio, o OCHA informou que, segundo relatos, “ofensivas recentes atingiram edifícios residenciais e barracas que abrigavam indivíduos deslocados, sobretudo em Rafah e na zona leste da Cidade de Gaza”. Seus parceiros humanitários estimam que “mais de 423 mil foram desalojados novamente em Gaza, ficando sem lugar seguro para onde ir”.
Para Mahmoud Hassouna, tal quadro é o pior pesadelo: “Meu único desejo é não ser expulso mais uma vez. Depois disso, quero que essa guerra doida acabe.”
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