
Toda guerra tem como consequência histórias terríveis que serão contadas pelos sobreviventes e passadas adiantes a seus descendentes. E nesse sentido, se olharmos com mais atenção, podemos perceber que a maioria (se não todas) as histórias de contos de fadas clássicas são oriundas de períodos de guerra, de pandemia e de muita dor nas cidades, servindo como recurso não só para não deixar o registro desaparecer com os bombardeiros e mortes, mas também de tentar passar o conhecimento através de uma narrativa mais suave, principalmente às crianças, que precisavam ter o conhecimento sobre a realidade que as cercava, ainda que com a utilização de palavras mais dóceis. Caminhando estes passos, estreia nesse grande feriadão o longa de animação ‘A Mais Preciosa das Cargas’.
Durante a Segunda Guerra Mundial, um trem atravessa a floresta no interior da Europa, levando centenas de milhares de pessoas judias para os centros de concentração nazista. Num vilarejo esquecido entre os trilhos, uma mulher vive o luto de ter perdido seus filhos para a fome, enquanto seu marido, um pobre lenhador, corta filetes de lenha na floresta e tenta se manter firme, pois apesar da perda, o fato de não ter mais filhos significa menos uma boca para alimentar. Certo dia, em meio a tanta dor, a jovem mulher pede aos céus por um milagre de conseguir um filho, até que, de repente, aos pés do trilho do trem, ela ouve um choro de um bebê. Decidida a cuidar desta criança independentemente de suas origens, a mulher leva o bebê para casa, o que causa uma mudança brusca na paupérrima vida dessa pequena família.
Com um traço que mistura nanquim e aquarela num formato 2D, o espectador é transportado a duas sensações estéticas a partir desta escolha: uma, que estamos vendo uma história em quadrinho em movimento (e, não coincidentemente, é baseado na HQ ‘A Mercadoria Mais Preciosa: Uma Fábula’, de Jean-Claude Grumberg), pois as passagens de cena são realizadas com uma fotografia que lembra como é desenhado cada quadrado de uma HQ, priorizando os elementos importantes da cena no centro ou na luz; a outra sensação é a de sermos transportados para uma região árida do Holocausto, perto demais do terror, desinteressante demais para uma invasão – e, portanto, um olhar diferente sobre aquele período.
O domínio da direção e do roteiro adaptado do realizador Michel Hazanavicius (indicado à Palma de Ouro em 2024 por este trabalho) atravessa o longa com sutileza, respeito e muita intenção de dizer o que não é dito. Com pouquíssimos diálogos e personagens cuja firmeza dos traços faciais são ocultadas, a narrativa vai se desenrolando em múltiplas interpretações: quem quiser, poderá assistir à jornada de uma mãe enlutada em ter uma nova criança para cuidar; ou, ainda, poderá assistir a (mais) uma cruel face do Holocausto, que obrigou a tantas escolhas irreversíveis; há, ainda, a história de um homem endurecido pela vida e pelas perdas, que sutilmente começa a voltar a sentir o pulsar da vida nas coisas; há a faceta da intolerância religiosa, da fome, do desemprego ou, mesmo ainda, de como a contemporaneidade ainda carrega vestígios desse passado sombrio.
‘A Mais Preciosa das Cargas’ merece toda a atenção do espectador. Belo, delicado, gentil e tristíssimo, este filme desavisadamente toca o coração de quem o assiste ao apontar que a mais preciosa das cargas é, também, a mais pesada delas.