“Aquele senhor que era meu pai”

Não! Não é de meu pai que em princípio pretendo falar.

Também não poderia sê-lo assim, afinal nunca tive “um senhor que era, que fosse, ou que tivesse sido, o meu pai’,porque aquele que sempre foi o meu pai, Manoel Cabral Machado, nunca deixará de sê-lo, como presença viva e continuada no meu existir.

Mas é de paternidade e de tantos outros desencontros que eu pretendo falar, afinal o grande escritor Marcos Vargas Llosa, falecido em Lima-Peru, no último domingo, 13 de abril, assim se refere a seu pai, “aquele senhor que era meu pai”, Ernesto Vargas Maldonado, marido de sua mãe,  Dora Llosa Ureta, os quais se separaram após cinco meses de casamento, e de  uma relação traumática e conflituosa, que por essa razão, o menino só conheceria o pai aos dez anos de idade, quando sua mãe um dia lhe dissera que seu pai não era defunto, mas estava bem vivo!

Tão vivo, que muitas peripécias seriam contadas no livro de memórias bem biográfico “Peixe na Água”, onde “Marito”ou “Varguito” ali se desnuda contando muitos embates e discordâncias com seu pai, com este saindo com uma arma em punho contra o filho já jovem, acusando-o de incesto amoroso com sua Tia Julia, num relacionamento tido assim pecaminoso, casamento que durou alguns anos, tema também do famoso e delicioso “Tia Julia e o Escrevinhador”.

De Vargas Llosa eu me empolguei com o formidável “Guerra do Fim do Mundo”, onde o autor em lendo a notável geopoética “Os Sertões”, do nosso Euclides da Cunha, embrenhou-se pelos arranhentos de Canudos, ali romanceando e criando personagens fictícios, contracenando com outros reais e já perdidos na nossa História por criminosa desmemória…

Ninguém falara tão bem de Antônio Conselheiro e sua guarda católica, com o sertão querendo virar mar e o céu sendo traçado nas montanhas colinas em farturas de ditosos de méis e cuscuz-com-leites.

E em outros deleites que Vargas Llosa traçaria com os feitos notáveis das Irmãs Mirabal, as irmãs mariposas, contando os feitos terríveis da ditadura de Trujillo em “A Festa do Bode”.

E porque não dizer de outros temas mais leves como “Conversa na Catedral”,Travessuras da Menina Má” e “Pantaleão e as Visitadoras”, “Quem matou Palomino Molero”

E porque não falar de ensaios formidáveis onde o ficcional se mistura com o conjuntural, nas infindáveis lutas ideológicas em ”Sabres e Utopias”, eterna luta de américas luso-espanholas, e outros como “O Sonho do Celta”,  “Os chefes e os Filhotes”, “O Herói Discreto”, a eterna intentação, em “A Tentação do Impossível”, com a capa contendo a famosa pintura de Eugène Delacroix com “La Liberté guidant le peuple”, a liberdade guiando o povo, conduzido por  Gavroche e Eponine, os filhos heróicos do espúrio Thenardier , heróis e vilões de Victor Hugo, em  aula de cultura e literatura…

E porque não falar também de “O Chamado da Tribo”, onde grandes pensadores são relembrados para nortear o mais que execrado pensamento liberal, em contraponto ao sempre inútil socialismo que só semeia misérias…

E outras deletérias narradas em “Tempos Recios”, adquirido por mim numa viagem a Buenos Ayres, e que no Brasilfoi traduzido por “Tempos Ásperos”.

Todos da grande criação de Vargas Llosa, ele que também se candidatou a Presidência do Peru, que preferiu eleger a Alberto Fujimori, que depois virou Ditador e terminou na cadeia.

O  que foi bom para nós, porque a literatura foi quem ganhou…

Em outras vias, é preciso dizer também que como homem, Mario Vargas Llosa se casou muitas vezes.

Primeiro com sua Tia Julia,  Julia Urquidi Illanes, casamento que vingou de 1955 a 1964.

Dez anos mais tarde, largou sua tia para se casar com sua prima carnal, Patricia Llosa Urquidi, sobrinha de Julia, casamento que durou cinquenta anos, de 1965 a 2015, e do qual três filhos foram gerados: Álvaro, Gonzalo e Morgana Vargas Llosa.

Patrícia, sua prima e segunda esposa, tinha então 19 anos, e ele era quase dez anos mais velho.

Por ocasião do recebimento do Prêmio Nobel de Literatura, Mário Vargas Llosa prestou uma vibrante homenagem à mãe de seus três filhos, Patrícia, mulher que compartilhou sua vida por cinquenta anos, elogiando-a pelo seu  “caráter indomável” e seu apoio infalível.

“Ela sempre suporta as minhas manias, as neuroses e as birras que me ajudam a escrever. Sem ela, minha vida teria sido varrida há muito tempo por um turbilhão caótico (…). “Ela é aquela que faz tudo e faz tudo bem”, proclamou o escritor perante a Academia Sueca em 2010, ao receber a ilustre condecoração.

Amante, esposa, mulher e mãe, secretária e guardiã do templo… Patrícia assume todos este papéis antes de ser destituída cinco anos depois.

Porque o escritor, mulherengo sempre, cinco anos depois, no ano de 2015, e aos 79 anos de idade era o centro de novas atenções, com novo escândalo.

Após comemorar cinquenta anos de casamento em Nova York, o escritor inicia um novo relacionamento, desta vez com Isabel Preysler, ex-mulher do cantor espanhol, Júlio Iglesias, marcando fim do seu segundo casamento.

Na revista espanhola ¡Hola!, declarou o escritor: “Este ano foi o melhor da minha vida”.

O autor é sucesso com a imprensa de celebridades, e os leitores são apaixonados por seu novo romance: “Se esse é o preço que tenho que pagar para ficar com a pessoa que amo, eu pago.” Mas com resignação, não com entusiasmo”,comentou o escritor na época.

O intelectual e a famosa socialite madrilena embarcam em um romance em que cada um passa a se adaptar à vida e à rotina do outro.

O autor deve assumir que tem como “noiva” uma das mulheres mais famosas da Espanha, e uma das mais cobiçadas pela imprensa de celebridades, relação que seria descrita como uma união entre uma “carpa e um coelho”, e que depois seria descrita por Vargas Llosa, oito anos depois, quando tudo chegou ao fim; como uma simples “experiência, só isso”, já que Isabel Preysler anunciou a separação no Natal de 2022 na mesma revista ¡Hola!, aquele periódico  que publicara a primeira foto dos pombinhos.

Quanto a Vargas Llosa, ele fará alusões muito claras à sua ex-noiva, à sua família e ao seu estilo de vida em seu romance “Os Ventos”,  que eu não li, ensejando uma guerra midiática bastante comum para o grande escritor.

Concretamente, depois de desafiar a autoridade de um pai tirânico, Mario Vargas Llosa quebrou todas as regras de propriedade, nunca temeu controvérsias, sempre imaginando e embelezando histórias de amor.

“Não me arrependo de nada”, confidenciou ele em 2023 ao El Pais Semanal, pouco antes de sua entrada na Académie Française, conforme excerto de “Éternel amoureux et cœur indomptable”, Amante eterno e coração indomável de  Aurélia Vertaldi, publicado em Le Figaro, edição de 15 de abril.

Mario Vargas Llosa faleceu em Lima aos 89 anos nos deixando saudades…

Em outras ilações, já diziam os latinos: “mater semper certa est”, a mãe é sempre certa.

Quanto ao pai, repetia-se desigualmente por sinuoso e sem novelo, insinuando uma espécie patranha de desconfio, de desconcerto, e até instilando um rastro por indício de dolo: “pater autem incertus”, o pai, porém,… é incerto!

E nessa incerteza, já outros repetiam para parco consolo, justo em tempos inexistentes de comprovação sanguíneas de DNA, sempre rasuráveis e falsificáveis: “pater est cuius nuptiae demonstrant”, o pai é aquele cujas núpcias comprovam…

Não era à toa, portanto, que os Romanos, desde a Grécia antiga, mantivessem suas esposas reclusas no gineceu, lugar da casa onde lhes era tudo permitido, menos a presença masculina.

Eram tempos em que o desconfio, permanecia zumbindo às orelhas dos machos, pois que estes em extrema maioria, salvo poucas exceções, nunca foram vocacionados à criação de proles que lhes não pertencessem.

O tema enseja todavia, muitas exações curiosas, porque tudo deriva de um conúbio sempre temido por nunca consentido.

O adultério de Helena com Páris, por exemplo, ensejou uma guerra entre dois mundos, a Guerra de Troia.

Conflito terrível cantado em versos por Homero; com os espartanos Atreus de Menelau e Agamenon, campeando  aqueles bravos troianos, filhos de Príamo, com Heitor à frente combatendo Aquiles, e com Cassandra, se descabelando inútil, a prever uma miséria que justo viria dentro de um oco cavalo de madeira, onde ali se acoitava o sagaz Ulisses, para o incêndio final, e derradeiro, de toda a história.

Em história igual, por eloquente e diferente, em o Rei Lear, o monarca louco, perdulário e inconsequente, William Shakespeare, prefere falar de coisas iguais da humana ingratidão, comparando filhos de mesma cepa, e a outros desiguais, de casta diferente, na busca e no abocanho de uma herança comum mal dividida.

Porque ali o tema não enseja filiação, suas dúvidas e incertezas, mas outras de mesma natureza.

Ali se compara, o execrável improceder de Goneril e Regan, duas irmãs rapaces, frente a doce Cordélia, todas da mesma cepa de Lear, o pai, e da mesma mãe, que na peça não prosa nem por memória, porque a trama prefere permear o não menos nobre, Conde de Gloster, desprezando o amor de seu filho verdadeiro, por legítimo, e abençoado Edgar, preferindo aquele Edmundo, que em bastardia o iludia.

O assunto vale porque em tantas vilanias de Goneril e Regan, melhor na cena avilta e profana o filho bastardo Edmundo, iludindo e empolgando tudo e todos, a se gloriar de sua, dele concepção superior, por natureza pecaminosa e adulterina:  “Por que nos estigmatizam chamando-nos de ‘vil’, ‘infame’, ‘bastardo’? Os bastardos possuem o vigor das paixões voluptuosas de que são fruto…, já  os filhos legítimos; estes  foram concebidos na indiferença morna dos amores apagados…”

 

Por isso vale a prece e o seu desejo de surrupiar falseando a herança legítima de seu irmão Edgar: “Deuses, protegei os bastardos!”

Bastardos, ou filhos de rameiras, que não mais existem no Estado-Democrático-de-Direito, todos herdando igualmente: os “filhos legítimos”, aqueles assim nomeados, resultantes do casamento oficial; diferente dos  “filhos naturais”, aceitos e toleráveis porque obtidos eram, via os arroubos comuns da solteirice, antes dos casamentos na Igreja ou no Civil; e aqueles tidos e havidos como  intoleráveis; os “filhos ilegítimos”, vilipendiados, e assim mal chamados, “adulterinos”, muito comuns aos arrebatamentos irrefreáveis dos desejos proibidos, existidos por pecaminosos e, por pior, passíveis de condenação pela lei dos homens.

Condenação que longe de punir o varão, menosprezava-se só a lascívia da amante e o seu fruto em bastardia… Porque ao zangão todo zumbido lhe era de bom valimento.

Em outras valias, todavia, por temer tal engano em bastardia, o Tribuno Caio Júlio César, grande comandante vitorioso, escritor notável de “De Bello Gallico”, texto das minha aulas de Latim com o Professor Jugurta Franco, no Colégio Jackson de Figueiredo, destrinçando o “Ludus Quartus”, compêndio do Padre Milton Valente S.J., ali não se vê a célebre frase atribuída a ele, Júlio Cesar: “À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”. Ou seja: “A mulher de César deve estar acima de qualquer suspeita”.

Uma suspeita válida para qualquer homem comum, que bem merece o conto e a História, porque César se casou três vezes.

Na primeira vez, o seu amor foi Cornélia Cinila, de ascendência patrícia e nobre, que morreu de parto, antes lhe deixando uma filha de nome Julia, que seria depois esposa de Pompeu.

Enviuvando-se de Cornélia Cinila, e após ter-lhe traçado o panegírico, por laudatio funebris” ou louvação fúnebre, César contraiu núpcias com uma moça belíssima, Pompeia Sula, filha de Quinto Pompeu Rufo, de uma antiga descendência consular e de Cornélia, filha do ditador Lúcio Cornélio Sula, aquele que substituíra o popular Caio Mário, após a assim chamada 1ª Guerra Civil da República Romana, que não é nosso assunto, mas bem valia.

Bem valeria, não fosse a suspeita de César com a sua nova e bela esposa, Pompeia Sula, quando esta promoveu uma festa em sua casa onde as convidadas seriam apenas  mulheres, e homem nenhum, nem o próprio dono da casa podia se aproximar do evento.

Ocorre que um sujeito chamado Publius Clodius, jovem rico, abastado e atrevido, por se achar apaixonado por Pompeia: disfarçou-se de tocadora de lira e, clandestinamente, entrou na festa, na esperança de se aproximar da amada.

Conta-se que foi um escândalo terrível, porque os dois foram pegos em flagrantes, ninguém sabendo o que faziam, o comentário sendo pior do que aquele insinuado por  Iago, o maior vilão da literatura Shakespeariana, dizendo ao tolo Otelo, “O Mouro de Veneza: “Acautelai-vos, Senhor, do ciúme; é um monstro de olhos verdes, que zomba do alimento do que vive. Vive feliz o esposo que, enganado, mas ciente do que passa, não dedica nenhum afeto a quem lhe causa o ultrage. Mas que minutos infernais  não conta que adora a dúvida, quem suspeitas continuas alimenta e ama deveras!”

Como Cesar não era tolo e bruto como Otelo, Pompeia Sula não teve a mesma sorte da doce e pura Desdêmona, o desfeito findando em comédia sem permear qualquer rastro de tragédia.

Porque Cesar entrou com uma petição de divórcio contra sua mulher Pompeia Sula, tentando incriminar por adultério e a  Publius Clodius, como vilão, afinal nessas coisas de conúbio insinuado, há sempre aqueles que só acreditam se houver o prévio enganche do barbante, cordão separando os corpos em teste; “per veram probationem coitus”, por verdadeira comprovação do coito.

Como Cesar não fizera o teste sacana da prendeia do cordão, nem o malfeito feito fora também, bem documentado pela autoridade pericial, melhor restou repudiar, por fim Pompeia Sula por divórcio, ficando para sempre a boa lição cesariana : “À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”.

E porque assim foi, César se casou de novo, desta vez com Calpúrnia Pisônia, aquela em cujo pesadelo previra sua morte, justo frente aos punhais, ferido vinte e três vezes,  segundo relato de Suetônio, ferimentos que só um lhe fora fatal, talvez desferido por  Caius Brutus, o seu filho adotivo, ao qual se referiu por espanto e em grego terminal:  καὶ σύ, τέκνον“, até tu, ó criança!

Interessante é que César em tempos anteriores, nunca contestara uma gravidez havida com Cleópatra, de quem foi perdidamente apaixonado, mas aí a história é outra e os vilões também.

Mas se o assunto tangencia hiperbolicamente a bastardia, há aqueles que não são corneados, como bem é o caso de Bentinho, no meu perquirir do Dom Casmurro, tão soturno e taciturno, quão Machado de Assis assim o traçou, afinal sua amorável Capitu, ali também é tão planejada, doce e terna, e apaixonada, que ninguém o imaginaria, que um Escobar qualquer a escorvaria, desfolhando-lhe a flor entreaberta, ensaiando um amor infiel a restar em desconfio.

Ou seja; o tema é bom, a cerzir miríades de interpretações, porque Bentinho enviuvou, de Capitu levando consigo sua inocência para sempre, mas que lhe restou mal cerzida e descosturada numa desconfiança eterna, afinal o filho de ambos, o menino Ezequiel tinha todo o jeito do Escobar, cuspido e escarrado, como se dizia então.

Porque o pior traído é aquele que não foi, mas pensa ter sido! Como Otelo, o mouro tolo que esgana asfixiando sua inocente Desdêmona, depois se matando porque pior para ele era continuar vivendo, a morte lhe sendo uma sua “grã-ventura!”.

E em outras desventuras findam as palavras de Otelo estabelecendo uma grande verve : “Deve a honra viver mais que a virtude?”

E nesta mesma verve o tema foi e voltou, permeando Vargas Llosa, afinal tudo partiu de um seu texto notável, retirado de “Peixe na Água”; mais precisamente em  “Aquele Senhor que era meu pai”, a ensejar muitas reflexões, questionamentos e dúvidas.

Porque o resto é elocubração somente…

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