
A cada quinze minutos, alguém, em algum lugar do mundo, está ouvindo o Bolero de Ravel.
O Bolero de Ravel é a peça musical mais conhecida de todos os tempos – e é impossível encontrar alguma pessoa que não conheça seus famosos toques. Arquitetada pela genialidade de Maurice Ravel, a composição foi encomendada pela lendária bailarina Ida Rubinstein, transformando-se em um importante pedaço da história da França e do mundo. Não é surpresa que Ravel tenha ultrapassado em sua terra natal o status invejável de Charles Debussy, sagrando-se o maior compositor do país, mesmo quase noventa anos depois de sua morte. Agora, somos convidados a conhecer um pouco mais sobre a história dessa lendária obra de arte com o longa-metragem ‘Bolero: A Melodia Eterna’, que chega aos cinemas no próximo dia 17 de abril.
Dirigido por Anne Fontaine, o projeto funciona como uma cinebiografia que tenta se desvencilhar dos convencionalismos do gênero, mas percebe que isso é uma tarefa difícil. Dessa maneira, a cineasta, que já se aventurou pelo mundo das biopics com o famoso título ‘Coco Antes de Chanel’, apoia-se em outros elementos da construção cinematográfica para ao menos mostrar ousadia à medida que abraça as fórmulas – seja na fotografia pomposa e saudosista de Christophe Beaucarne, ou na construção cíclica da montagem assinada por Thibaut Damade. O resultado é aprazível, lançando luz sobre a introspectiva vida pessoal da misteriosa figura de Ravel e de que forma a construção de sua magnum opus serviu como reflexo de uma vida marcada por traumas.
Ravel, encarnado através do sutil e envolvente charme de Raphaël Personnaz, após tentativas fracassadas de conquistar um segundo prêmio nos concursos do Conservatório de Paris de que participava, chamou a atenção de Rubinstein (Jeanne Balibar), que lhe pediu uma transcrição orquestral de seis peças do conjunto em piano Iberia, assinado por Isaac Albéniz. Porém, as peças estavam sob proteção de direitos autorais por já terem sido transcritas por um condutor espanhol – compelindo Ravel a criar uma obra original baseado na clássica dança conhecida como bolero. E, à medida que recuperava memórias que deixaram profundas marcas em seu âmago, ele deu origem a uma obra que representaria a materialização de uma psique aturdida.
Fontaine, também responsável pelo roteiro ao lado de outros quatro pares de mãos, apoia-se livremente na monografia ‘Maurice Ravel’, de Marcel Marnat, para trazer um pouco de esclarecimento a todo o mistério envolto em Ravel – e, no geral, faz um sólido trabalho ao unir pedaços profusos da história em um convincente longa-metragem que se vale do talento nato do elenco. Personnaz, como já comentado em brevidade no parágrafo acima, é a força motriz que transforma o compositor em uma palpável personalidade, deixando que suas expressões falem mais alto que os diálogos – nutrindo de uma ótima química com Balibar e com Doria Tillier (Misia Sert) e Emmanuelle Devos (Marguerite Long), encarnando duas personagens que influenciaram outras produções de Ravel.
Um dos aspectos mais interessantes do longa-metragem é a ambígua linha que traça entre o que Bolero se transformou na cultura popular com o passar das décadas e o que a peça musical representa para uma libertação tardia de Ravel. “Ela deve acabar em catástrofe, assim como tudo”, Personnaz profere enquanto conduz uma das primeiras tentativas de transcrição da Iberia. Ora, se sua bagagem pessoal, que inclui as inúmeras tentativas falhas de conseguir reconhecimento pelos membros do Conservatório e as consequências da I Guerra Mundial, o faz enxergar cada movimento humano como uma catástrofe em potencial, preso em um ciclo inquebrável, por que não usar essa repetição para sua criação?
Unindo elementos modernos a incursões barrocas e neoclássica, Ravel transfigura Bolero em uma confissão declamatória marcada pela repetição instrumental, cuja marcação mista é apoiada por um ritmo em ostinato imutável, tocado 169 vezes à medida que caminha para seu crescendo – dialogando com a maneira que o filme se desprende da caixinha engessada do primeiro ato e encontra seu ápice. E, se Bolero finaliza em uma catártica conclusão, o mesmo ocorre com a vida de Ravel, que faleceu em virtude de problemas de saúde que o deixaram com limitações neurológicas e que colocaram mais um elemento lendário à sua narrativa.
‘Bolero: A Melodia Eterna’ é uma grata produção francesa que se vale de um ótimo elenco protagonista e coadjuvante e que traz explorações interessantes, cortesia das habilidosas mãos de Fontaine e da performance irretocável de Personnaz. Ainda que esbarre em certos obstáculos, o filme encontra sucesso em sua própria honestidade e na maneira como humaniza Ravel em um melodrama potente e prático.