“Vai fazer faxina!”: Os desafios enfrentados pelas mulheres no esporte

Villa Cruzz Academy

Villa Cruzz Academy
(Foto: Arquivo Villa Cruz Academy)

De justificativas que iam da biologia à moralidade, por séculos, as mulheres foram excluídas daquele que era o território exclusivo dos homens, o esporte. No Brasil, o ápice dessa exclusão ocorreu em 1941, com um decreto que proibia as mulheres de praticar diversas modalidades como futebol.  

Hoje, elas se destacam em modalidades antes dominadas por homens, como atletismo, vôlei e futebol. No entanto, o caminho foi e ainda é repleto de obstáculos, com desafios que vão da exclusão nas primeiras competições à disparidade salarial, preconceito e falta de visibilidade e oportunidades.

A evolução da mulher no esporte

Da torcida à prática e à formação profissional, a participação das mulheres no esporte tem crescido de forma significativa. Esse avanço é evidenciado no relatório Women and Sports – Insights sobre a relação das mulheres com esportes, realizado pela IBOPE Recupom, que aponta um aumento de 20% no interesse feminino por esportes desde 2020 — o dobro do crescimento registrado entre os homens (9%). As modalidades mais populares entre as mulheres incluem vôlei (70%), ginástica artística (69%) e natação (65%).

A jornalista Duda Ferreira ressalta como o esporte foi essencial para sua escolha profissional. “Antes de escolher o jornalismo, eu escolhi o esporte. Quando ligava a televisão e assistia aos programas esportivos, tinha certeza de que queria trabalhar com aquilo. Foi assim que decidi cursar a faculdade.”

A adesão das mulheres à prática esportiva também tem aumentado, representando 60% dos 21 milhões de novos praticantes desde 2020.

O Villa Cruz Academy, fundado em 2017, exemplifica os desafios enfrentados por equipes e modalidades esportivas femininas em Juiz de Fora. O projeto começou com o objetivo de ser um atrativo cultural para jovens do bairro Vila Esperança I, inicialmente voltado para o futebol masculino. No entanto, Bruno Silva, coordenador do Villa Cruz, logo notou o crescente interesse pelo futebol feminino. “Começamos com apenas quatro meninas, depois passamos para 13, 20, e o número só aumentava. Isso atraiu meninas de outros bairros, como Santa Luzia, Ponte Preta e Santa Cruz, que vinham treinar conosco por falta de recursos e locais adequados”, lembra Bruno.

Duda FAEFID
(Foto: Arquivo Pessoal Duda Oliveira Torres Rocha)

Larissa Martins, atleta de 16 anos do Villa Cruz, conta que seus primeiros passos no esporte foram em casa, brincando com o primo durante a infância. “Comecei a praticar com 6 anos, jogando em casa mesmo com meu primo, e desde então vi ali um conforto, um jeito de me expressar.” Ela destaca ainda que, apesar de considerar o esporte como profissão, sabe que enfrentará alguns obstáculos. “Vejo atualmente como minha profissão e futuramente como uma carreira. O principal obstáculo acaba sendo o preconceito.” comenta.

Desafios e barreiras ainda presentes

Apesar dos avanços conquistados pelas mulheres no esporte, os desafios ainda são significativos. Uma pesquisa do Ticket Sports, realizada em 2022, apontou que a participação feminina é de 45%, mas esse percentual ainda está abaixo da presença masculina. A ideia de que o esporte é um ambiente predominantemente masculino continua sendo um obstáculo, restringindo oportunidades e perpetuando preconceitos.

Duda Oliveira Torres Rocha, estudante do oitavo período de Educação Física, destaca que a presença feminina no esporte segue sendo desvalorizada. Modalidades como o futebol ainda são vistas como majoritariamente masculinas, e a predominância de homens nas comissões técnicas dificulta a inserção e permanência das mulheres nesses cargos. Ela ressalta que o trabalho das mulheres no meio esportivo frequentemente não recebe o devido reconhecimento. “O espaço feminino no esporte ainda é desvalorizado. Muitos esportes são culturalmente considerados masculinos, e o futebol é um exemplo claro disso. Essa percepção reduz as oportunidades para as mulheres nesse meio”, afirma.

No universo das torcidas organizadas, o machismo também se manifesta. Duda Ferreira relata que, fora da esfera profissional, já passou por episódios de assédio em ambientes de torcida organizada. Integrante da Fiel Juiz de Fora desde 2019, ela conta que foi assediada repetidamente por um mesmo homem.”Por várias vezes, ele me assediou, tanto pessoalmente quanto por mensagem, e em um dia que estávamos indo de caravana para um jogo em Belo Horizonte, ele tentou me beijar a força. Além disso, uma vez fui agredida fisicamente dentro do local de encontro da torcida – por motivos desconhecidos. Neste último caso, pelo menos, o agressor foi punido com expulsão da torcida.” relembra. 

A torcedora conta também que vivenciou diversas situações machistas, como questionamentos ao seu conhecimento sobre futebol e insinuações de que mulheres assistem a jogos apenas para atrair a atenção masculina. “Desde mais nova, nunca deixei de frequentar lugares ou fazer o que gosto por causa da opinião ou atitude de alguém, principalmente de homens”, ressalta.

Dentro dos gramados o preconceito é mais um adversário a ser vencido.  Larissa lembra um episódio de preconceito em um campeonato local, quando pais de atletas adversários lhe disseram: “Isso não é para você, vai arrumar uma faxina que você ganha mais”. Sua companheira de equipe, Maria Eduarda, de 15 anos, reforça que, embora haja avanços, a visibilidade e o investimento no esporte feminino ainda são limitados. Segundo ela, a desigualdade em termos de respeito e apoio em comparação ao esporte masculino continua evidente.

O esporte feminino em Juiz de Fora

Duda Ferreira relembra um episódio de machismo ocorrido durante sua atuação como storymaker (quem cria stories de perfis) em um jogo do Tupynambás, no Estádio Municipal, no ano passado. Enquanto realizava a cobertura da partida em campo, torcedores do time adversário a assediaram com comentários constrangedores. “No momento, não tive reação, como acontece com muitas mulheres. E, assim como na maioria dos casos, também não houve qualquer tipo de repressão aos agressores”, relata.

Além das dificuldades enfrentadas dentro dos gramados, ela também analisa a falta de representatividade feminina no jornalismo esportivo em Juiz de Fora. “Quando pensamos em mulheres atuando nessa área na cidade, é difícil lembrar de nomes que realmente estão no mercado. Confesso que, particularmente, me recordo de apenas uma. Isso já evidencia a escassez de representatividade e, principalmente, a falta de oportunidades para as mulheres nesse segmento. Apesar disso, percebo que, nos últimos anos, especialmente a partir de 2020, há um movimento maior de mulheres buscando o jornalismo esportivo, e também das empresas em abrir espaço para elas”, observa.

Duda Ferreira
(Foto:Arquivo Pessoal Duda Ferreira)

No cenário local, o Villa Cruz tem se destacado na formação de atletas femininas, reunindo jogadoras de 8 a 17 anos em diversas categorias. 

Apesar dos avanços, o futebol feminino em Juiz de Fora ainda enfrenta desafios estruturais, como a falta de competições, investimentos e categorias de base. Bruno destaca que, embora tenha havido progresso nos últimos cinco anos, ainda há muito a ser feito. “A cidade oferece apenas um campeonato, a Copa Prefeitura, que tem pouca estrutura e é voltada apenas para a categoria adulta. As categorias de base ficam sem espaço, e a falta de investimento e incentivo continua sendo um problema recorrente”, aponta.

Sem campeonatos estruturados e apoio institucional, o Villa Cruz é obrigado a buscar oportunidades fora de Juiz de Fora para que suas atletas possam competir em alto nível. “Sem iniciativas privadas e competições em outras cidades, o futebol feminino local teria ainda menos espaço. Há muito a evoluir, especialmente nas categorias de base. Juiz de Fora tem potencial, mas precisa investir mais no segmento feminino”, afirma o coordenador Bruno Silva.

Investir é preciso

O investimento no esporte feminino não é apenas uma questão de equidade, mas também uma estratégia comprovadamente rentável. No vôlei, a Superliga Feminina se consolidou como uma vitrine para patrocinadores, gerando 680 mil exposições de marcas, 932 horas de exibição e um impacto de R$ 4,3 bilhões em valor de mídia na temporada 2023/24. O retorno financeiro direto para os patrocinadores foi de R$ 859 milhões. A modalidade, quarta mais popular do Brasil, conta com um público de 71 milhões de fãs engajados, tornando a competição um ativo valioso para o mercado.

Mesmo com o crescimento e visibilidade, a desigualdade de investimentos entre equipes masculinas e femininas ainda é um obstáculo. Muitas atletas enfrentam dificuldades para garantir patrocínios consistentes, o que limita o desenvolvimento da modalidade e impede que talentos cheguem ao alto rendimento.

Estudante de educação física, Duda Oliveira reforça a necessidade de mudanças estruturais para que a equidade no esporte seja, de fato, alcançada. “A maioria das comissões técnicas dos clubes ainda é formada por homens, o que reforça a ideia de que esses cargos não são para mulheres. Isso torna a inserção e a permanência feminina nesses espaços ainda mais difíceis”.

Maria Eduarda reforça a desigualdade na cobertura midiática e na captação de recursos. “O futebol masculino tem muito mais visibilidade, passa mais na TV e recebe mais investimentos. A falta de apoio e parcerias dificulta o crescimento do feminino. Muitas seletivas acontecem em outras cidades, e nem sempre temos condições financeiras para viajar”, pontua.

O futuro da mulher no esporte

A realização da Copa do Mundo Feminina de 2027 no Brasil representa uma oportunidade histórica para fortalecer o protagonismo das mulheres no esporte. Além de ampliar a visibilidade e atrair novos investimentos, o evento pode impulsionar uma mudança estrutural, promovendo a inclusão feminina em todos os níveis da prática esportiva.

Apesar dos avanços, os desafios ainda são muitos. A marginalização, a desigualdade salarial, a falta de visibilidade e o baixo investimento seguem sendo barreiras que limitam o crescimento do esporte feminino. Se antes as mulheres eram excluídas das competições, hoje enfrentam outras formas de resistência, que vão desde a disparidade de oportunidades até a falta de representatividade em cargos de liderança.No entanto, a presença crescente das mulheres no esporte mostra que, mesmo diante das dificuldades, elas continuam transformando o cenário esportivo e abrindo caminhos para as próximas gerações.

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*Estagiária sob supervisão do editor Paulo Cesar Magella

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