‘Este é um livro feito de silêncio e berro forte’, afirma Marcela Hallack

MARCELA

Marcela Hallack e Pedro Loures
Marcela Hallack e Pedro Loures, mãe e filho, dialogam com escritores negros brasileiros no livro “Versos de liberdade: um colóquio contemporâneo”, cujo lançamento ocorre no dia 21 de março, na Autoria (Foto: Divulgação)

É no café da manhã de cada dia que “Versos de liberdade: um colóquio contemporâneo” (Funalfa: 2025) foi gestado. A imagem é de aconchego, mas também de urgência. Mãe e filho, Marcela Hallack e Pedro Loures, entregues à poesia, à arte, ao diálogo por libertação. Ela teceu versos; ele deu vida às ilustrações. “Certamente, o livro é mais forte do que nós. Talvez a construção dos poemas tenha influenciado a atmosfera familiar, não o contrário. Digo isso porque não percebo esse livro como uma construção do agora, mas fruto de uma construção de muito, muito tempo, de muita leitura, estudo e arte”, conta a autora. “Cá em casa, desde sempre, respiramos a arte do diálogo para a liberdade, representada no encontro consigo mesmo e com o outro. Aqui, estudamos muito, fazemos música, poesia, partilhamos o pão e discutimos ideias e valores. Cada um é tão diverso e respeitado nas suas individualidades e desejos, nos seus tons, sons e unicidades”, completa Marcela, convidada da coluna Sala de Leitura de hoje.

Contemplada no Edital Quilombagens, de 2023, do Programa Cultural Murilo Mendes, a obra será lançada no dia 21 de março, às 19h, na Autoria Casa de Cultura. Em suas páginas, Marcela e Pedro estabelecem um diálogo com vários escritores negros brasileiros, incluindo alguns nomes do período pré-abolição. “Acredito que as imagens e os versos, a ‘palavra e aquarela’, nessa obra, são uma coisa só. Ou seja, são diferentes formas de expressão artística que resgatam as mesmas temáticas, os mesmos abismos, as mesmas memórias. A relação entre a concepção visual do livro, o processo criativo, as pesquisas e a tradução da linguagem poética em aquarela e nanquim aconteceram de maneira natural e gradual, por meio do debate constante entre ilustrador, designer e autora”, comenta Pedro.

Marcela é juiz-forana. É formada em Direito e trabalha como oficial de justiça. Contudo, seus interesses também passam por áreas, como filosofia, sociologia, direitos humanos e literatura. Como ela mesma se define, ela é “silêncio e coração, travessia, vento e canção”. Já Pedro, “nascido num dos domingos do Outono de 2002”, define-se, poeticamente, como palavra e aquarela, abismo e memória. “Por enquanto, eu sou todo o mundo que não te pertence. E isso é mais que o suficiente.”

Marisa Loures – Marcela, “Versos de Liberdade: um colóquio contemporâneo” é dividido em quatro cantos, e cada um deles parece representar uma fase ou reflexão diferente. De que maneira essas partes se conectam para formar o todo da obra?

Marcela Hallack – “Versos de liberdade: um colóquio contemporâneo”, obra contemplada pelo Edital Quilombagens/2023, do Programa Cultural Murilo Mendes, através da Funalfa – Prefeitura de Juiz de Fora, foi concebido em cantos, como uma orquestra de muitas vozes, que convida o leitor ao colóquio. Em Cantos I, “Amei para entender estrelas”, há o primeiro poema intertextual, “adentro, descalça… para me entender me ame”, que abre o diálogo com esta indicação de escuta franca, de respeito, de construção, de amor. Em Cantos II, há o chegar à vida, representado por “Anjos e Ventres”, a ancestralidade, o berço e o crescer com suas agruras. Esse ato encerra-se com o poema “Meio-dia”, trazendo a bênção de uma mãe para o filho sair para o mundo. Dando título ao Cantos III, “Bastidores” representa o círculo do bordado, ou ainda, o espaço cênico, espelhando a vida no mundo, no nosso Brasil, ainda tão desigual e eivado por injustiças e distorções: “nós e nossos infinitos nós”. E, nessa toada crescente, chegamos ao Cantos IV: Alforrias, que reflete liberdades… na palavra, na arte da vida.

No poema “O Cantador pede licença”, a imagem da alma cansada parece refletir o peso das opressões. Mesmo assim, há um brado por liberdade. Como você vê essa dualidade entre o cansaço e a luta pela libertação? O “caminho a trilhar” e o “mar” podem ser metáforas da resistência contínua, apesar das adversidades?

Este é um livro feito de silêncio e berro forte. E, ao mesmo tempo, traz uma firmeza de sentido e significado. Algo quieto, guardado como um sufoco, como um soluço, um espasmo, um espanto, um grito. Pedir licença representa o respeito ao pisar no solo do outro, ao adentrar no diálogo. A alma cansada reflete, sim, o peso das amarras e das algemas que nos fazem sucumbir enquanto humanidade, um clamar da consciência que precisa sacudir a existência para que possamos encenar os próximos atos, rumo às asas libertadoras. Sim, são metáforas: tanto caminho a trilhar, tanto mar, tanto mar e a coragem a que, às vezes, damos o nome de resistência.

O livro dialoga com escritores negros brasileiros, inclusive do período pré-abolição. Quais são essas vozes que ecoam nos versos de vocês?

O processo de criação literária envolveu ampla pesquisa bibliográfica, incluindo, entre outros, “Tratado de direito antidiscriminatório”, de Adilson José Moreira, “Racismo estrutural”, de Silvio Almeida, “Escravidão”, de Laurentino Gomes, “Pequeno manual antirracista”, de Djamila Ribeiro, além de pesquisas sociológicas e históricas. As perquirições das ciências jurídicas e sociais constituem-se em subsídios para a arte poética que aqui se apresenta. A esta atmosfera somaram-se as referências literárias, cujo repertório inclui Maria Firmina dos Reis, Luiz Gama, Castro Alves, Carolina Maria de Jesus, Cruz e Souza, Lima Barreto, entre outros. É incrível, por exemplo, ler a célebre frase de André Rebouças (1838 – 1898) – “Quem possui a terra, possui o Homem” – e perceber que, ainda hoje, o homem subjuga o homem. A literatura desses autores ressoa indignação e, ao mesmo tempo, coragem e resistência. Voltamos à resistência.

Capa de versos de liberdade
Capa do livro “Versos de liberdade: um colóquio contemporâneo” – Foto: Divulgação

“Versos de Liberdade” remete a um desejo de rompimento, mas também à construção de algo novo. Como vocês enxergam a poesia como ferramenta de transformação social?

A arte é ferramenta de transformação social. A arte e, sobremaneira a poesia, para além do saber intelectual, toca a alma, possibilita aguçar o sentimento e só assim, com o sentimento aguçado, no seu ponto mais fino e delicado, que é o amor, é que poderemos transformar a nós mesmos e, por consequência, o mundo em alguma coisa melhor para todos.

Você se define como “silêncio e coração, travessia, vento e canção”. Como essas palavras moldam a sua escrita? De que maneira essa poética se conecta com a mensagem de liberdade que permeia os versos do livro?

Faço-me silêncio para a escuta do outro, do mundo ao redor. Acredito que é o que faz a gente ser mais gente e, talvez por isso, eu sinta tanto. Além disso, a percepção de que estamos de passagem, de que somos travessia, em si mesma, traz essa mensagem de liberdade. Não levamos nada material daqui, mas podemos construir um tesouro leve e incalculável nos encontros e nos aprendizados que esta caminhada proporciona.

E você faz parte de um grupo dedicado à leitura de autoras mulheres, o que certamente cria um espaço de troca e fortalecimento. Essa vivência no grupo influencia o seu fazer poético e a sua escrita?  

No Leia Mulheres Juiz de Fora nós lemos autoras mulheres, mas o grupo é aberto para leitores homens também. Quem desejar, pode chegar. A oportunidade de participar de um grupo de leitura, sobretudo de autoras mulheres, vivifica as trocas e os encontros. Outro dia mesmo falei que a literatura, para mim, é encontro. Encontro do leitor com ele mesmo, do leitor com o escritor, do leitor com outros leitores. Um alargar de percepções, uma oportunidade única de escuta e empatia.

Existe alguma conexão entre esse ambiente de sororidade e os temas de liberdade e resistência presentes em “Versos de Liberdade”?

Acredito que sim. Em uma sociedade estruturalmente racista e misógina, as conexões em ambientes como o Leia Mulheres Juiz de Fora trazem fortalecimento. Ali, encontrei mulheres generosas, potentes, inteligentes. Cada encontro é uma troca respeitosa e empática que permite o autodesenvolvimento. Também partilho deste sentimento de resistência nos Saraus da Confraria dos Poetas. Tive a honra de ser convidada para participar do Leia Mulheres Juiz de Fora, como escritora, neste mês de abril, em que o Leia completa nove anos. “Versos de liberdade: um colóquio contemporâneo” será lido e discutido pelo coletivo, no dia 29 de março, às 15h30, no Planet.

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