‘Morada’: Espetáculo que acontece neste sábado é convite para repensar laços familiares

Morada

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Espetáculo ‘Morada’ acontece neste sábado, no CCBM (Foto: Divulgação)

Neste sábado (15), Juiz de Fora recebe o espetáculo “Morada”, da companhia mineira AFO!TA Teatro. A peça, que roda o Brasil há oito anos, aborda, com humor e ironia, como as dinâmicas familiares são alteradas a depender das transformações sociais em vigência. Laços, afetos e convenções são convidados a serem repensados durante a apresentação. A peça terá duas sessões no Centro Cultural Bernardo Mascarenhas (CCBM), às 19h e às 21h, e a entrada é gratuita. Os ingressos podem ser retirados antecipadamente pelo Sympla ou no local, com uma hora antes de cada sessão.

Em entrevista à Tribuna sobre “Morada”, Kaíke Barto, um dos atores da peça, fala sobre sua concepção, o que se coloca em cena e, inclusive, a própria trajetória da AFO!TA Teatro. Confira:

Tribuna: Como foi o processo de concepção da peça? 

Kaíke Barto: Bem, começamos em 2016 em São João del Rei. Nos conhecemos no Curso de Preparação para Atores da então Cia. Manicômicos, hoje Teatro da Pedra e também no curso de teatro da UFSJ. Nos tornamos muito amigos e decidimos que queríamos fazer algo juntos. Essa é uma das principais  premissas de quem quer se dedicar ao teatro: estar disposto a fazer algo junto. Nossa mistura era composta por muitos interesses, cada integrante já possuía uma trajetória muito diversa nas artes, isso nos possibilitou uma alquimia única.  A princípio, não cogitávamos uma montagem. Eram apenas oficinas para partilhar os saberes. Aos poucos, o desejo de criação foi surgindo. Começamos a pesquisar textos, nos encontramos com autores como Clarice Lispector, Italo Calvino, Caio Fernando Abreu e com nossas próprias histórias de vida. Fomos, pouco a pouco, nos constituindo enquanto agrupamento de atores e atrizes – este também era um desejo: um grupo de criadores sem direção fixa, para que pudéssemos trabalhar a multiplicidade de olhares como tônica. Das oficinas, foram surgindo pequenas células cênicas. Destas células, surgiram argumentos para uma temática recorrente nas nossas conversas: as relações familiares. Seja para narrar os afetos ou para repensar convenções ou os estereótipos do que temos enquanto imaginário coletivo. Como as relações familiares nos constituem? Como contribuem para as transformações sociais? A partir destas e outras perguntas, fomos encontrando nossa processo de criação. Apostamos no simples: um quadrado marcado com fita adesiva no chão, uma plateia quadrilateral, onde o espectador visualiza quem está à sua frente enquanto assiste a peça – e logo, participa da trama – alguns móveis de madeira, atores e atrizes que estão sempre em cena e que não necessariamente defendem um mesmo papel do início ao fim, mas que jogam com figuras ao longo do espetáculo. O espaço cênico começou a ganhar forma de cômodos de uma casa e aos poucos fomos também desvelando os incômodos de uma morada. Apenas depois de várias cenas já levantadas, foi que convidamos Marcos Fonseca, nosso amigo, para organizar o material com o seu olhar na direção. A partir disso, criamos uma matriz do material que tínhamos e fomos “armando” a peça em quadros, como os canovacci da commedia dell’arte e organizando de forma não linear a dramaturgia autoral. 

Como as dinâmicas sociais são refletidas na vida familiar? 

Entendo que a família é tanto um reflexo quanto um agente de transformação da sociedade. E não necessariamente se dá apenas por laços biológicos. Em “Morada”, abordamos os estereótipos, contradições e afetos familiares, colocando “sobre a mesa” este assunto para ser pensado por todos nós, no ato. Podemos perceber como certos padrões sociais são reproduzidos dentro do ambiente doméstico, mas também como a intimidade familiar ou a falta dela permite tensioná-los.  

Por exemplo, os papéis de gênero – muitas vezes estabelecidos pela cultura e pela tradição – se manifestam na divisão de tarefas dentro de casa, nas expectativas sobre comportamento e até mesmo na forma como os afetos são expressos ou reprimidos. Da mesma forma, questões como classe social, religião e até influências midiáticas ajudam a moldar os conflitos e laços entre os membros da família.  

Outro ponto interessante é como a família pode ser um espaço tanto de acolhimento quanto de conflito. Afetos e desafetos coexistem porque cada indivíduo dentro da família traz suas próprias vivências e desejos, sua trajetória, sua crença, que nem sempre se encaixam nos padrões esperados. Isso gera contradições: ao mesmo tempo que a família pode oferecer segurança e pertencimento, ela também pode ser o espaço onde as normas sociais mais rígidas são impostas.  

A peça, ao jogar com o tema com humor, música e dramaticidade, permite uma reflexão crítica sobre o que significa “morar” em um espaço compartilhado com outras subjetividades, como os laços familiares se constroem e se desconstroem, e como as relações íntimas são afetadas pelas transformações sociais mais amplas.

São muitos os modos de ser das famílias, desde sua estruturação, até as formas como o afeto é demonstrado (ou a falta dele). Como essas quase infinitas formas de ser família são representadas no palco? 

No processo de criação da peça, nós conversávamos muito sobre nossas próprias relações familiares. Isso nos mostrou, já no próprio grupo, uma infinidade de formas de “ser família”. Percebemos que esse microcosmo era mais complexo do que imaginávamos. Foi então que esbarramos no conto “O ovo e a galinha” de Clarice Lispector e apostamos nesta paisagem, nas possíveis metáforas do ovo, para tratarmos desta diversidade. Ao longo da peça, retornamos a esta imagem muitas vezes. Seja na feitura de um bolo em cena, em um jantar compartilhado, lançando ovos de um ator para outro ou mencionando o ciclo de criação da vida na gestação. 

No conto, o ovo é um mistério que escapa a definições fixas, assim como a ideia de família, que vai além de um único modelo. Da mesma forma que a narradora tenta compreender o ovo sem sucesso, a família também não pode ser reduzida a regras definitivas, pois é feita de camadas, afetos e contradições.  

“Morada” questiona os padrões sociais e mostra que a família é um espaço de construção contínua, onde o que nos une não é apenas o sangue, mas as relações e vivências compartilhadas. Ao mesclar o enigma do ovo com as dinâmicas familiares, a peça propõe uma reflexão sobre o que significa “morar” com alguém e como a família está sempre em movimento, reinventando-se além dos estereótipos.

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Espetáculo roda o Brasil há oito anos (Foto: Divulgação)

Gostaria que comentasse um pouco sobre esses oito anos que “Morada” vem rodando o Brasil. Para uma peça independente é bastante tempo, né? 

Sim, é bastante tempo! Nós brincamos que somos uma companhia de uma peça só (risos). E isso é muita coisa! “Morada” é o nosso carro chefe. Cada integrante tem seus projetos pessoais e nos apoiamos muito, para além de estarmos juntos em cena. Viver de arte no Brasil, sendo do interior ainda, é muito difícil. Com todas as dificuldades estruturais que o setor enfrenta, poder dizer que estamos caminhando para uma década de vida desta obra autoral, independente e encampada por jovens artistas é mesmo um feito. Nestes oito anos, tivemos encontros muito especiais com espaços e públicos muito distintos. É sempre uma grande novidade! O perfil da peça perfeita isso também, é um trabalho poroso que se “contagia” com o contexto do momento. É mesmo uma alegria para um grupo independente ter em seu histórico circulações a partir de prêmios como o BDMG Cultural e o Funarte Circulação das Artes. Em 2022, a companhia também foi indicada na categoria de Melhor Grupo ao Prêmio Cenym de Teatro Nacional pela Academia de Artes no Teatro do Brasil.

Quais são as expectativas ao trazer “Morada” para Juiz de Fora?

Já passamos por praticamente todas as cidades dos integrantes do grupo e nos faltava Juiz de Fora, cidade da nossa atriz e musicista Natália Vargas. Então, estamos muito felizes por esta oportunidade! Queremos muito conhecer o público juiz-forano e esperamos  que possam se divertir conosco  e nos ajudar a contar estas histórias. 

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*Estagiário sob supervisão da editora Cecília Itaborahy

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