Ação do TJRJ acende alerta sobre uso abusivo da Lei de Recuperação Judicial

A Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) determinou uma inspeção nas 1ª, 2ª, 3ª, 4ª, 5ª, 6ª e 7ª Varas Empresariais do estado para averiguar possíveis irregularidades em processos de falência e recuperação judicial (RJ).

Segundo o colunista Lauro Jardim, de O Globo, um dos focos da inspeção é a lista dos administradores judiciais (AJ) nomeados nos processos de RJ nos últimos cinco anos, o que inclui casos rumorosos de grandes empresas, como Oi e Americanas, entre muitas outras.

Serão investigados também os critérios adotados para fixação dos honorários dos AJ, tema sensível a todos os envolvidos em processos de RJ que correram nessas varas. Os casos de falência que tramitaram no Rio de Janeiro nos últimos cinco anos também perscrutados pela Corregedoria-Geral.

Assim como nas RJ, a corregedoria quer saber quais foram os critérios adotados para fixação dos honorários dos administradores judiciais e se os AJ nomeados nos processos de RJ também o são nos processos de falência. Conforme o jornalista Lauro Jardim, há expectativa entre bancas de advocacia de que medidas semelhantes sejam adotadas no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).

A advogada Mariana Rech Hoffmann, especializada em direito empresarial, ressalta que é papel regular da Corregedoria inspecionar as varas havendo ou não evidências de irregularidades. “No caso concreto, há evidências de irregularidades, e a Corregedoria tendo esta atribuição é compelida a averiguar a situação”, afirma.

Para Gustavo Soares Giordano, advogado de direito empresarial, arbitragens e contencioso estratégico no Marcelo Tostes Advogados, a Lei de Recuperação de Empresas e Falência (11.101/2005) criou um mercado com “rentabilidade inigualável” para escritórios especializados em administração judicial. “Os honorários fixados pelos juízes para esse tipo de trabalho são quantias vultuosas, normalmente balizadas em percentual do total do passivo da empresa falida ou em recuperação judicial”, afirma.

Giordino lista processo recentes de recuperação de empresas com dívidas bilionárias como fator de atração e competição. “As nomeações para o cargo de administrador judicial se tornaram extremamente concorridas e a disputa da preferência dos juízes uma verdadeira batalha entre os profissionais dessa área”, observa.

IDPJs

O Rio de Janeiro se notabiliza por acumular casos de RJ que se arrastam por anos e são marcados por conflitos nos quais se usa indiscriminadamente o recurso de Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ). “A utilização de referido incidente de forma indiscriminada acarreta além de insegurança jurídica, grave repercussão econômica-social”, observa Mariana.

Embora legítimo e com finalidade de ressarcir credores de massas falidas, o instrumento de IDPJ, aparentemente, tem sido mais utilizado para obter acordos milionários para engordar a remuneração dos prestadores de serviços, mediante comissões de 5% no caso de AJ e de até 30% para os escritórios de advocacia envolvidos nos processos e por vezes contratados a pedido do AJ.

Giordano aponta o IDPJ como ferramenta relevante, mas afirma que “tem sido utilizado de forma abusiva” em diversos casos de falências para “coagir empresários” e buscar bens de terceiros. “Em Minas Gerais por exemplo, há notícias de procedimentos de IDPJ e incidentes de extensão dos efeitos da falência em casos onde os bens e ativos já arrecadados do falido já seriam suficientes para pagamento da totalidade dos credores. Como a remuneração dos administradores nas falências muitas vezes varia de acordo com os ativos arrecadados e também depende dessa arrecadação para pagamento, não são raros os excessos para atender interesses pessoais desses profissionais. Há de se considerar ainda que esses incidentes quase sempre envolvem valores elevados e os administradores são remunerados à parte ou adicionalmente por essas medidas, inclusive com honorários sucumbenciais quando o administrador também é advogado”, contextualiza.

Morosidade

O resultado de excessos no Judiciário é um dos elementos para haver no Brasil recuperações judiciais que se arrastam por anos. É o caso da falência da Usina Floralco, pertencente às massas falidas das empresas GAM Empreendimentos e Participações S.A. e Flórida Paulista Açúcar e Etanol S.A., que teve desdobramentos até no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que tem investigado denúncias de abuso no emprego do IDPJ, em prejuízo de empresas processadas e levadas a acordo judiciais.

Um dos réus de um IDPJ questionou no CNJ a atuação da AJ e, inclusive, a contratação de um escritório de advocacia a pedido do próprio AJ, que seria remunerado no valor de 30% do que viesse a ser recuperado. O escritório era o Duarte Forssell Advogados, conhecido por atuar em falências e por ser contratado por inciativa de AJs. Foi até aberto processo administrativo para apurar a conduta dos magistrados que atuaram no caso, mas, em razão de acordo celebrado, as apurações não seguiram. Esse caso é um exemplo de como é importante que o CNJ passe a ter regulamento para tratar de contratações feitas em processos de falência e de RJ.

Entre outros casos importantes estão a Usina Albertina (Sertãozinho-SP), iniciada em 2008, e da Usina São Fernando (Dourados-MS), desde 2013. Ambas as empresas tiveram os processos de falência decretados pela Justiça, entre outros motivos, pela dificuldade imposta pelo tempo extensivo na recuperação judicial. Entraram para uma estatística comum no país, onde 106 das 446 usinas existentes estão com atividades paradas.

Na avaliação da jurista especializada em direito empresarial, a demora na condução de RJs leva os processos a terminarem sem solução. “O processo civil brasileiro determina como diretriz, dentre outras, a celeridade processual, contudo, em muitos casos, em razão da repercussão econômica e social do caso concreto, há uma demora na entrega jurisdicional. Essa demora acarreta, principalmente, na ausência de efetividade das decisões, considerando que, ainda que haja uma decisão, em muitos casos ela não tem mais o condão de solucionar a questão controvertida”, diz Mariana.

Transnacionalização

Alguns casos envolvem até a transnacionalização de jurisdição em outros países ou falências que se estendem há décadas na Justiça brasileira. O método se apoia na fragilidade contábil das empresas em processo de falência, valendo-se de processos sigilosos, quebra do sigilo de terceiros e obtenção de informações seletivas sem a garantia do contraditório, uma vez que não são obrigatoriamente submetidos a perícia ou investigação por solicitação do juiz do caso.

O objetivo é estender os efeitos da falência a esses terceiros, resultando no bloqueio de bens e na ameaça de responsabilização por todo o passivo da falência. O contexto faz com que os acusados acabem cedendo a acordos envolvendo o pagamento de cifras milionárias aos AJ.

Um caso recente de medidas envolvendo transacionalização que ganhou os holofotes é o da falência da Sam Indústrias. Por maioria de votos, a 3ª Turma do STJ manteve o pagamento de 30% de honorários para o escritório Duarte Forssell Advogados por ter auxiliado o AJ na busca de bens de sócios da falida. Apesar dessa vitória, o voto vencido do Min. Humberto Martins, que fixava os honorários em 10%, traz considerações importantes que indicam a necessidade de se regular a matéria. Ele afirmou que 30% “afigura-se exorbitante e desproporcional, considerando inclusive a quantia a ser paga ao administrador judicial e para não prejudicar os valores que devem ser pagos aos credores”.

Agro em falência

A falência da Tinto Holding, que administrava frigoríficos da família Bertin, e de diversas usinas de açúcar e álcool, expõem o cenário adverso experimentado pelo agronegócio. A Serasa Experian registrou aumento de 40,7% no número de pedidos no terceiro trimestre de 2024 entre produtores rurais e empresas do ramo agropecuário. Foi de olho nesse setor que o governo Lula enviou, no início de 2024, um projeto de lei (PL 3/2024) para modernizar a Lei de Falências (n⁰ 11.101/2005), que completa 20 anos em fevereiro de 2025.

O projeto prevê, como uma das principais ações, a redução em 50% do tempo médio de processo de recuperação judicial e falência de cerca de dez anos. O texto já foi aprovado na Câmara dos Deputados e aguarda, desde abril de 2024, o Senado definir relator e comissão. Enquanto isso, uma série de processos seguem se arrastando em varas judiciais país afora. Mas não é só a celeridade que precisa ser aprimorada. O uso desenfreado de IDPJ e a falta de regulação na contratação de prestadores de serviço pelos AJ desincentiva investidores de se relacionarem com empresas em crise.

Lentidão emblemática

Um caso emblemático de lentidão e uso de IDPJ foi a recuperação judicial da Fazendas Reunidas Boi Gordo, cuja falência havia sido decretada em 2004, após o estouro de um escândalo de pirâmide que levou a um prejuízo de R$ 2,5 bilhões a cerca de 30 mil investidores. Em junho de 2024, uma fazenda no Mato Grosso foi vendida em leilão por R$ 24,5 milhões, para ressarcir credores. O processo segue na Justiça paulista.

Outros casos notórios que se arrastam na Justiça envolvem o setor sucroalcooleiro. Das 446 usinas instaladas de açúcar e álcool instaladas no Brasil, 24% (107) ou estão em processo de recuperação judicial ou com falência decretada. Desse total, 57 estão com as atividades paralisadas.

Aqui, o IDPJ vem sendo amplamente utilizado por AJ e escritórios de advocacia contratados. O exemplo mais singular é o da Usina Laginha, de União dos Palmares (AL), cujo dono era o falecido empresário João Lyra, que já foi o deputado federal mais rico do país. A empresa havia se submetido a RJ em 2008 e entrou em processo de falência em 2021, após a morte de Lyra, em meio a uma briga entre as herdeiras, as irmãs Thereza Collor de Mello e Maria de Lourdes Lyra. O processo segue na Justiça sem desfecho. A dívida com cerca de 7,8 mil credores soma R$ 4 bilhões. A briga foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou a realização de uma nova assembleia de credores para a próxima semana.

Glossário de siglas

▪ AJ: administradores judiciais.
▪ CNJ: Conselho Nacional de Justiça.
▪ IDPJ: Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica.
▪ RJ: recuperação judicial.
▪ TJRJ: Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
▪ TJSP: Tribunal de Justiça de São Paulo.

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