Tudo que aprendo dirigindo automóveis

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A crônica desta semana é escrita no calor (não muito quente) do fim da leitura de “Do que eu falo quando falo de corrida”, de Haruki Murakami. O livro é basicamente um diário do escritor japonês durante sua preparação para a Maratona de Nova York. Ao longo dos ensaios, ele tece correlações entre a corrida e a escrita de romances, a disciplina que ambas exigem e a solidão inerente a uma e outra atividade. Mas Murakami está se referindo especificamente à corrida de longa distância, aquela em que o camarada tem que ficar horas ali consigo mesmo, escutando o próprio corpo e sozinho com seus pensamentos. É bem diferente de um trote maroto na esteira da academia.

Eu não sou nem serei um corredor, e dificilmente escreverei um romance, mas não pude deixar de me identificar com a ideia de pensar quando em movimento. Comigo, acontece dirigindo automóveis. Desde que comprei meu primeiro carro – um Gol 1.0 azul-prateado, ano 1995, ali por volta de 2004 ou 2005 -, eu raramente passo um dia sem dirigir. Não é algo que me dê muito prazer dentro da cidade, porque você simplesmente não consegue andar – eu não digo correr, digo andar mesmo – com tanto tráfego e semáforos e motofretistas e ônibus e vendedores de Mentos. Mas a pilotagem na estrada, essa sim, me agrada muito, e não porque eu seja um pé de chumbo, mas antes pela possibilidade de meditação.

É mais comum que eu esteja acompanhado quando rodo pelas rodovias federais e estaduais. Seja na companhia da Sra. Guiducci, das meninas, dos camaradas da minha banda, nessas ocasiões, que são as mais frequentes, estamos sempre conversando – no meu caso, mais ouvindo do que falando – e a pilotagem é muito agradável, mas não sobra muito espaço para pensar. Todavia, quando tenho a oportunidade de viajar sozinho, fazendo o carro rolar pelo asfalto por duas ou três horas, é uma outra experiência. Você pode ir com os vidros abertos e com a música bem alta, prestando atenção nas texturas dos arranjos das guitarras, dos pianos, descobrindo detalhes que nunca ouvira.

Ou pode simplesmente deixar o rádio desligado e se concentrar no barulho do motor, na vibração dos pneus. Pouco a pouco, você sente que a máquina se torna uma extensão do seu corpo e uma comunhão entre o metal e a carne se estabelece. É uma experiência ainda mais intensa quando você pilota uma motocicleta, mas aí há sempre um fator de tensão presente de forma muito forte, porque um mínimo descuido e você não aparece pra comer o estrogonofe na janta. Nos automóveis há uma margem maior para correção de eventuais vacilos e, por conseguinte, para deixar a mente vagar. Se a viagem é feita em estradas desconhecidas, maior o prazer, porque você descobre a cada curva uma nova paisagem, e esses novos cenários sugerem novas reflexões.

Sozinho com a música e a macia vibração do motor e o asfalto correndo por baixo das suas rodas, você se vê de repente mergulhado em pensamentos dos mais diversos. Vêm à mente recordações da infância e planos para o futuro, cenas de filmes e prestações a vencer, paixões enterradas e fantasmas insepultos. Surgem dores, ressurgem amores, esgueiram-se medos. Dentro da cabine onde o vento é o diapasão, reverberam esperanças contidas, projetos ousados e, com muita sorte e alguma insensatez, uma ideia, uma pequena, colorida e corajosa ideia que, por alguns quilômetros, parecer ser só sua.

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