Crítica | O Bom Professor – Quando um Filme Desafia sua Percepção Sobre Denúncias de Abuso

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O Bom Professor (Pas de Vagues) apresenta uma narrativa intensa e sufocante sobre o julgamento precipitado de um professor, explorando as armadilhas do sensacionalismo e da falta de preparo institucional diante de um escândalo escolar.

Baseado em uma experiência vivida pelo próprio diretor e roteirista Teddy Lussi-Modeste, co-escrito ao lado de Audrey Diwan (O Acontecimento), o filme denuncia a forma como um simples mal-entendido em sala de aula pode se transformar em uma espiral de condenação social. Ao construir esse discurso, no entanto, a obra acaba sendo contraproducente ao simplificar um debate complexo e colocar em choque a credibilidade da denúncia e a inocência do acusado.

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A interpretação de François Civil como Julien Keller é avassaladora. O personagem transmite de maneira pungente a sensação de impotência de alguém que vê sua reputação desmoronar sem defesa adequada. Sua generosidade, demonstrada ao levar alunos para comer fora da escola ou ao apoiar uma aluna tímida, a jovem Leslie (Toscane Duquesne) se volta contra ele em um contexto onde qualquer gesto pode ser distorcido. 

Dessa maneira, O Bom Professor consegue fazer com que o espectador sinta empatia pelo professor, vítima de uma escola despreparada e de uma comunidade tomada pela desconfiança e pelo medo. Essa construção dramática, entretanto, acaba obscurecendo outra vítima: a aluna. Em solidariedade a Leslie, outras estudantes e professores tornam as aulas de Julien quase inviáveis.

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O grande problema do filme é que, ao focar no sofrimento do professor, ele trata a denúncia da estudante como uma mera mentira, ignorando que o desconforto sentido por ela tem raízes reais, independentemente da intenção do docente. A narrativa falha ao não abordar a necessidade de um acompanhamento pedagógico e psicológico e transformar tudo em um julgamento público. A carta da adolescente revela que sua sensação desconforto foi genuína e, por isso, merecia uma investigação cuidadosa, sem ser prontamente descartada ou aceita sem questionamentos.

Além disso, a ocultação do relacionamento do professor com Walid (Shaïn Boumedine) adiciona outra camada de tensão. Embora essa questão não tenha relação direta com a acusação, sua decisão de esconder a verdade reflete o medo da homofobia na periferia parisiense e aumenta o mal-estar em torno de sua figura. Em paralelo, a presença do irmão da garota, Steve (Armindo Alves), que instrumentaliza a situação para ameaçar o professor de morte, adiciona um elemento de brutalidade que desvia a discussão do cerne da questão.

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Ao retratar Julien enfrentando seus alunos de forma digna, mesmo sob ameaças constantes, a obra enaltece a resiliência do docente. Teddy Lussi-Modeste coloca, entretanto, o foco quase exclusivamente sobre ele, e corre o risco de descredibilizar o relato da estudante. O que se perde aqui é a noção de que, na realidade, adolescentes enfrentam muito mais abusos e negligência do que falsos julgamentos de docentes. O público é convidado a ter sempre empatia por Julien e revolta pela “mentirosa” Leslie. 

Como mulher, ao revisitar a experiência escolar, é impossível ignorar como situações de desconforto, toques inadequados e piadas de cunho sexual vindas de professores são recorrentes. Ao construir um professor injustiçado, a obra pode desincentivar jovens a relatarem suas vivências, pois impõe a dúvida sobre a veracidade de qualquer desconforto sentido. Por outro lado, a esperança é que filmes desse tipo sirvam como um alerta para os homens, demonstrando o impacto de suas ações e a importância de reconhecer como sua posição de poder em sala de aula influencia a percepção de seus alunos.

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Enquanto O Bom Professor pende para uma visão binária entre vítima e acusado, o drama turco Ervas Secas (2023), de Nuri Bilge Ceylan, aborda uma situação semelhante com mais acuidade e prudência, deixando o veredicto para o espectador. Esse tipo de abordagem poderia ter enriquecido a narrativa, tornando o debate mais aberto e menos pendente a um dos lados.

O tema da influência do professor sobre seus alunos já foi explorado em diversas obras cinematográficas, cada uma abordando as complexidades desse papel de maneira singular. Em Entre os Muros da Escola (2008), de Laurent Cantet, o embate entre um professor e seus alunos reflete os desafios da educação pública na França, cuja comunicação entre docentes e estudantes pode se perder em mal-entendidos e preconceitos mútuos. Já Numa Escola de Havana (2014), de Ernesto Daranas Serrano, apresenta a relação entre um jovem professor idealista e um aluno problemático, mostrando como a escola pode ser um refúgio transformador para crianças em meio a dificuldades sociais. 

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O Bom Professor é uma obra que provoca e incomoda, mas, ao tentar denunciar um sistema falho, acaba reduzindo um tema complexo a uma oposição binária entre inocência e culpa. A realidade, como sabemos, é muito mais difícil de decifrar. O filme abre um debate necessário sobre as dificuldades enfrentadas por professores e alunos, mas peca ao não aprofundar as nuances de cada lado. Afinal, nem todos os professores são como Julien, e nem todas as alunas são como Leslie, mas cada caso merece ser tratado com a sensibilidade que o filme, infelizmente, negligencia.

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