Judicialização em massa penaliza consumidores e compromete acesso à saúde suplementar

A saúde – um direito universal no Brasil – está ao sabor da lei. Quanto mais a medicina avança, provocando aumento nos custos de procedimentos e medicações, mais cresce a demanda pela apropriação desses serviços, nem sempre acessíveis tanto por meio da saúde pública quanto privada. A saída encontrada tem sido a de entrar com processos legais para resolver a situação. Ao lado do envelhecimento da população, que amplia ainda mais essa demanda, esse cenário tem trazido um dilema difícil de ser resolvido: a judicialização excessiva da saúde. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aponta que só em 2023 foram apresentados 570 mil novos processos, sendo 219 mil relativos à saúde suplementar (um incremento de 33% em relação ao ano anterior).

Os custos desse cenário recaem sobre os consumidores, que arcam com reajustes cada vez mais altos nos planos de saúde e também sobre as operadoras que, por sua vez, têm encontrado dificuldade em fechar suas contas. Para Gustavo Ribeiro, presidente da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), a raiz de todos os problemas é a insegurança da legislação brasileira na área de saúde. O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), em evento público, declarou que a judicialização da saúde é um dos maiores problemas do Judiciário. Ele defende que o Judiciário deve agir com moderação e que as demandas de saúde devem ser tratadas pelo Ministério da Saúde.

Ribeiro destaca que os temas que a ANS tem agendado para consultas públicas deveriam ser estudados individualmente, temendo que as propostas da agência sejam esvaziadas. Um dos temas levantados entre esses pontos é a questão da incorporação de novas tecnologias ao rol de serviços obrigatórios a serem atendidos. O executivo da Abramge aponta que esse conjunto da ANS era atualizado a cada dois anos e atualmente, para a área oncológica, por exemplo, passou a ocorrer a cada seis meses. “Com o gatilho da judicialização, eu tenho que entregar tudo o que está no rol. Só que a precificação dos planos é definida pelo rol, pela idade dos segurados e pela rede oferecida.”

A ANS informa que não tem acesso a ações judiciais relacionadas à saúde suplementar, a não ser quando a Agência é parte em alguma ação. De toda forma, destaca que acionar a Justiça é um direito constitucional de qualquer cidadão e que entende e respeita isso. Em resposta à IstoÉ, a agência afirma que realiza fiscalização rigorosa do setor e trabalha para que as operadoras entreguem os produtos contratados, incentivando-as a prestar serviços mais qualificados aos beneficiários de planos de saúde. “Sobre eventuais endividamentos das operadoras, informamos que não há reflexo nas regras de reserva técnica.”

Daniel Januzzi, superintendente Jurídico da Unimed do Brasil, ratifica que o Sistema Unimed vê com preocupação o aumento do número de processos judiciais envolvendo a saúde suplementar. “Desde 2022, a flexibilização de regras no setor trouxe instabilidade e uma maior tendência à judicialização. A alta judicialização dificulta as provisões orçamentárias e a precificação, tem o potencial de comprometer a capacidade dos planos de saúde de fornecer os serviços e pode impactar ainda nos reajustes de mensalidades, prejudicando o coletivo de beneficiários e tornando os planos menos acessíveis.”

Para tentar desenrolar esse nó, a Abramge tem um tripé como proposta: o primeiro pé propõe a revisão da Lei dos Planos de Saúde em vigor desde 1998, que regulamenta os planos e seguros privados de assistência à saúde no Brasil. O segundo ponto está relacionado à melhoria da comunicação do setor com a sociedade. E o último envolve o CNJ no sentido da conscientização do poder judiciário para que se tome mais decisões técnicas. “Sem essas medidas vão colapsar tanto a saúde suplementar quanto o Sistema Único de Saúde (SUS).”

Esse impacto direto no SUS, explica a especialista Fabíola Sulpino Vieira, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), se dá porque muitas vezes o paciente consulta o médico particular e depois recorre ao SUS para conseguir medicações, exames e dar continuidade ao tratamento. Fabíola lembra de situações como a busca pelo coquetel contra o HIV, na década de 1980, ou do caso da fosfoetanolamina, conhecida popularmente como “pílula do câncer”, por prometer a cura da doença. Segundo ela, 13 mil ações foram movidas por cidadãos que queriam ter acesso à pílula, ainda que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tivesse informado que a substância não possuía autorização ou registro para uso como suplemento alimentar ou medicamento no Brasil. “Isso mostra que o direito à saúde não está em dar acesso à população a toda e qualquer tecnologia.”

Mas como definir a que o cidadão deve ter acesso ou não? “A decisão do juiz é muito complexa porque ele não é especialista no assunto, mas precisa julgar”, coloca Vera Valente, diretora-executiva da FenaSaúde. Ela destaca que existe uma questão emocional forte que pesa em casos como esses, o juiz fica em uma situação difícil e tem tendência a deferir. Como exemplo, ela apresenta o dado de que 80% dos casos de cobertura assistencial são deferidos, enquanto esse porcentual cai para 40% quando se trata de reajustes. “Temos trabalhado junto aos tribunais para que os juízes tenham uma fonte técnica no momento de tomar a decisão. Estamos falando de medicamentos na casa dos milhões. É um dinheiro que vai ficar faltando em algum outro lugar para atender casos que, às vezes, não devem ser deferidos.”

Vera conta ainda que o Nat-Jus (um instrumento de auxílio para os magistrados com competência para processar e julgar ações que tenham por objeto o direito à saúde) começa a ser mais conhecido pelos juízes e que é essencial que ele seja aplicado também à saúde suplementar. “A judicialização é a forma mais injusta de lidar com a saúde. Contra o SUS ela é ainda mais cruel, porque tira o recurso que seria usado em outras assistências.”

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