O documento da Nokia em reação ao iPhone é o retrato definitivo do Dilema da Inovação, e um alerta à Apple

Nokia

De vez em quando, surgem documentos que funcionam como pequenas frestas para as discussões que acontecem a portas fechadas no mundo da tecnologia e que, em maior ou menor grau, impactam o nosso dia a dia.

Em 2021, por exemplo, a empresa investidora de capital de risco Sequoia Capital tornou pública a apresentação que o Nubank fez em 2013 para buscar investidores.

À época chamada EOS, a startup defendia que havia um grande espaço na América Latina para um banco que não se comportasse como um banco, mas sim como um miguxo uma marca “jovem, contrariante, que rompe com o status quo, e que é o começo de uma revolução” 1.

Ao longo de 14 slides dolorosamente diagramados, a proposta explicava que o Brasil seria o melhor mercado para iniciar as operações, já que “50% da população tem menos de 29 anos” e “confia suficientemente em canais online para fazer transações”.

A EOS buscava US$2 milhões de financiamento inicial. A Sequoia gostou do que viu e o resto é história.

Similarmente, nos últimos dias, vimos outro documento interno bastante interessante vir a público. Desta vez, a partir das mãos geladas e rígidas da Nokia.

No dia seguinte ao anúncio do primeiro iPhone em 2007, aconteceu uma reunião multidepartamental na Nokia em que o recém-anunciado dispositivo da Apple foi colocado frente a frente aos pontos fortes e fracos da oferta de produtos da companhia finlandesa.

A comparação foi brutal. Com a vantagem do retrospecto, ela mostrava que toda empresa líder de mercado já sabe exatamente qual será a sua derrocada, mas não se mexe antes que seja tarde demais para tentar corrigir o curso. É o Dilema da Inovação na sua mais pura forma.

O Dilema da Inovação

Se você se interessa pelos pormenores do mundo dos negócios e ainda não leu o premiado livro “O Dilema da Inovação: Quando as Novas Tecnologias Levam Empresas ao Fracasso”, lançado em 1997 pelo Prof. Clayton M. Christensen, da Harvard Business School, recomendo bastante que o faça.

É claro que ler um livro sobre negócios de 1997 com o contexto de 2025 exige uma certa… flexibilidade interpretativa. Mas, essencialmente, o livro acerta ao explicar que uma empresa líder de mercado vive sob risco de perder o seu reinado, mesmo que ela faça tudo certo para defender e evoluir o produto (ou serviço, ou seja lá o que for) que a levou ao trono.

Em outras palavras, ele defende que, quanto mais uma empresa atua para proteger a sua posição de liderança, mais ela se expõe ao risco de ser deixada para trás caso a dinâmica do mercado mude além do seu controle 2.

Pois bem. No caso da Nokia, o exemplo perfeito dessa situação vem logo no início do documento. Ao dizer que “a interface (UI) da tela sensível ao toque do iPhone pode estabelecer um novo padrão de estado da arte” e que “o paradigma da nova UI oferece a promessa de uma facilidade de uso sem precedentes”, a empresa indicava que ela sabia que estava devendo nesse quesito, mas que nunca havia visto motivo para resolver esse débito técnico.

Ou, nas palavras da própria empresa:

A UI tem sido uma grande força da Nokia — pesquisa com consumidores indica que isso está em queda. Uma ação urgente é necessária para prevenir uma erosão ainda maior dessa posição.

Vale mencionar que, na época, a Nokia detinha aproximadamente metade do mercado global de telefones, mas nem por isso ela estava totalmente complacente. Com dias de diferença em relação ao anúncio do iPhone, ela tomou um dos palcos da CES 2007 para anunciar o N800, um celular munido de uma tela enorme (para os padrões do ano), rádio FM, Wi-Fi, Bluetooth, player de áudio/vídeo e um leitor RSS integrado.

Ele rodava o sistema Maemo, uma versão adaptada do Debian, e sua UI era bastante inspirada no esquema de navegação tradicional de PCs. Já a sua tela não era sensível ao toque e ele dependia de uma stylus para interagir de forma complementar aos controles físicos na lateral esquerda do aparelho.

Quando o anúncio do N800 foi totalmente eclipsado pelo iPhone, qual foi a reação inicial da Nokia? Bem, de acordo com o documento emergencial, foi pensar: “O N800 até que se parece com um iPhone deitado. Se a gente lançar um N800 preto com as bordas prateadas, será que cola?” Aparentemente, empresas também passam pelas cinco fases do luto.

Ironias à parte, o documento é repleto de análises bastante proféticas quanto às ameaças que acabariam por praticamente matar aquela encarnação da divisão da companhia 3, e chacoalhar o resto do segmento:

  • A UI tem sido a maior força da Nokia, portanto a UI pode ser a maior ameaça representada pelo iPhone.
  • O iPhone vai capturar o ar de descolado da mídia americana. Não resta muito ar de descolado para a Motorola.
  • O iPhone também vai atrapalhar a fase da Sony Ericsson e a estratégia coerente de música deles.
  • A RIM e a Palm devem sofrer — as ações delas foram as que mais apanharam.
  • O iPhone pode estimular a demanda pelo mercado high-end, ajudando todos a crescerem em volume de vendas nesta faixa de preço.

Por outro lado, outras passagens pareciam praticamente torcer para que as forças do mercado impedissem o iPhone de dar certo, já que ela própria (Nokia) parecia estar resignada ao fato de que o pior havia acontecido, e que ela havia sido pega irreparavelmente de surpresa.

É o que Luciana Gimenez chamaria de “wishful thinking”:

  • Limitações de distribuição podem restringir o impacto do iPhone.
  • O impacto financeiro na Nokia será mínimo, mas pode impedir sucesso ou penetração no mercado americano.
  • Será que um input baseado apenas em toque tem apelo para as massas?
  • […] expectativa de que as categorias para usuários QWERTY (fazendo alusão a usuários de produtos com teclados físicos) sigam fazendo sucesso.
  • Consumidor QWERTY está em uma faixa de preço diferente.

Por fim, como bem observou John Gruber, a empresa concluiu que precisaria de sangue novo para liderar uma nova divisão com foco em UI. Era, é claro, tarde demais.

O que isso pode dizer sobre o futuro da Apple?

Seria exagero dizer que a Apple esteja atualmente em uma posição bastante próxima à da Nokia pré-iPhone? Talvez. Atualmente, o Android detém 73,52% de market share global.

Porém, o iPhone representa metade do faturamento da Apple há mais de uma década 4, e isso obviamente a deixa bastante vulnerável a qualquer mudança que, ironicamente, cause o mesmo efeito que o mesmo iPhone causou em 2007.

Para piorar, por mais que a Apple tenha tentado diversificar a sua operação e as suas fontes de faturamento ao longo dos anos, a verdade é que ela segue refém do seu próprio sucesso, a ponto de já ter avisado os investidores que ela dificilmente terá outro produto como o iPhone. O próprio crescimento do faturamento de acessórios e de serviços está (atualmente) irremediavelmente associado à venda de iPhones, o que só reforça esse ciclo vicioso.

A sorte dela (e do resto do mercado, para ser justo) é que, por mais que outros produtos tenham tentado substituir — mesmo que em parte — os smartphones, eles falharam. As pessoas amam seus telefones, e isso não parece estar em vias de mudar tão cedo.

O que não significa que nunca irá mudar. Aconteceu com Kodak frente à fotografia digital, aconteceu com a Microsoft, com a Amazon e com a Meta (quando ainda era Facebook) frente à perda do bonde da era mobile, aconteceu com a IBM frente ao mercado de computadores pessoais, aconteceu com a Blockbuster frente ao streaming de vídeo e, atualmente, é inequivocamente o caso do Google frente ao crescimento de mecanismos de resposta como Perplexity e ChatGPT 5.

A essa altura, já é clichê dizer que “clichês são clichês por um motivo”. Mas, frente a esses fatores e, especialmente ao documento da Nokia, o provérbio de que “nada é para sempre” parece ser bastante apropriado. Não será hoje, não será amanhã e provavelmente não será tão cedo. Mas a era dos smartphones como carros-chefes do setor de tecnologia tem um prazo de validade irrevogável e, dado o histórico recente da Apple, ela não parece mais preparada para esse futuro inevitável do que a Nokia estava para a chegada do iPhone em 2007.

iPhones 16 Pro em Apple Store

Apple perdeu espaço no mercado global de smartphones em 2024

Apenas nos últimos anos, todos testemunhamos o enésimo fim da Lei de Moore e a conquista do Teste de Turing. Ainda assim, o Dilema da Inovação segue mais vivo do que nunca. E ele não poupa ninguém.

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Notas de rodapé

1    Alô, Think Different!
2    Vale mencionar que todo resumo é impreciso, e que há trocentas outras formas de explicar ou interpretar o Dilema da Inovação.
3    Depois da derrocada no mercado de telefones, essa divisão passou pelas mãos da Microsoft antes de ir parar sob o controle da HMD Global.
4    E detém a maior parte do mercado dos EUA.
5    É quase covardia o quanto o Google é infinitamente pior do que os novos entrantes do mercado para entregar a experiência que ele passou anos liderando aperfeiçoando, só que adaptada para a era da IA. Mas é o que é. Até o fim do ano, todos nós estaremos usando um mecanismo de busca baseado em um LLM. E garanto que a maioria não estará usando o Google (ou pelo menos, não 100% do tempo).
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