Crítica | ‘Trilha Sonora para um Golpe de Estado’ explora as artimanhas do neocolonialismo na Guerra Fria

trilha sonora para um golpe de estado

Em fevereiro de 1961, os famosos musicistas Abbey Lincoln e Max Roach invadiam o Conselho de Segurança das Nações Unidos em protesto contra a morte do líder congolês Patrice Lumumba – que havia assumido o cargo de governante assim que o país alcançou a tão sonhada independência e, pouco a pouco, se livrava das amarras do colonialismo e do imperialismo europeus. O motivo dessa invasão não se deu apenas pelo assassinato encomendado do líder em questão, que remava contra a maré dos interesses estadunidenses (ainda mais considerando os crescentes embates da Guerra Fria e o fato do Congo ser uma grande reserva natural de urânio, que foi utilizado como base da criação da bomba atômica), mas pelo uso de artistas de jazz negros como bodes expiatórios para a atuação inescrupulosa de agentes da CIA e da inteligência norte-americana em países africanos e asiáticos.

E dentro desse contexto complexo que o cineasta belga Johan Grimonprez resolve fornecer uma perspectiva nova e anti-imperialista acerca de um trágico capítulo da história da humanidade, orquestrado em vias de uma ambição desmedida e de uma manutenção do status quo dos países menos desenvolvidos perante a hegemonia sociopolítica de um capitalismo predatório e contínuo – em que os Estados Unidos e inúmeros outros países se preocupam apenas com uma coisa: poder. Assim, o documentário ‘Trilha Sonora para um Golpe de Estado’ emerge como um dos grandes títulos do ano e, após conferi-lo, uma das produções de maior prestígio dentro dos indicados ao Oscar.

Grimonprez, que também assina o roteiro dessa obra-prima cinematográfica, segue os passos de outros realizadores que utilizam sua arte como estandarte dos crimes cometidos por pessoas e governos que acreditavam estar impunes. Mais do que isso, é notável como o realizador tem total propriedade do tema que discorre nas telonas, reunindo arquivos audiovisuais e comentários de agentes reais que participaram do golpe em questão – e garantindo que a experiência do público não seja apenas unidimensional, e sim sinestésica através de uma montagem primorosa e de um crescendo factual que nos fisga desde os primeiros minutos.

A ideia aqui não é expor de modo exaustivo os fatos, visto que isso pode ser feito abrindo qualquer página da internet ou um livro de história: considerando que estamos lidando com uma peça fílmica e que a tão sonhada imparcialidade é quase intangível, o documentário parte de uma perspectiva clara e, ainda que imprima um ponto de vista determinado, faz questão de corroborar a própria tese com provas irrefutáveis – seja nas supracitadas gravações em vídeo ou até mesmo em entrevistas em áudio que aparecem, em excertos certeiros, em diversos momentos do projeto. Percebe-se, também, que Grimonprez adota o conceito da globalização para explorar de que maneira cantores populares de jazz serviam como fumaça para artimanhas de Estado – em uma espécie de thriller político que fornece ainda mais camadas ao longa.

Toda a estrutura da obra dá espaço para discussões multitemáticas – e o diretor não investe esforços apenas nas funções que lhe cabem: é notável o modo como ele se alia ao montador Rik Chaubet para garantir ritmo e dinamismo a uma narrativa que se afasta dos costumeiros didatismos do gênero e permite que o espectador reflita sobre como algo que aconteceu há tantas décadas ainda reverbera no escopo contemporâneo, principalmente nas situações ilusórias através das quais forças “invisíveis” atuam. Ora, em determinado momento, o lendário Louis Armstrong revela o desejo de renegar a cidadania estadunidense e refugiar-se em Gana após descobrir que agentes do serviço secreto encomendaram o assassinado de Lumumba por meio de um espetáculo que fez no Congo.

Se a fluidez técnica é um dos motivos pelas duas horas e meia do filme passarem em um piscar de olhos, os quesitos artísticos seguem um padrão similar, encaixando-se uns aos outros como engrenagens de um relógio: a fotografia de Jonathan Wannyn puxa elementos clássicos dos anos 1950 e 1960, enquanto a justaposição de nomes como Dizzy Gillespie, Nina Simone, Miriam Makeba, John Coltrane e tantos outros artistas, políticos e acadêmicos nos fazem ir e vir em um dos períodos mais tensos da era moderna, mostrando como dois fatos aparentemente exclusivos entre si convergem para um explosivo enfrentamento entre opressor e oprimido – ou seja, algo que se repete com constância assustadora.

‘Trilha Sonora para um Golpe de Estado’ merece ser apreciado em sua completude e serve como um forte aparato para entender os conceitos de neocolonialismo, neoimperialismo e o uso da música e da arte como armas políticas. Aqui, Grimonprez, que já havia trabalhado em produções como ‘Dial H-I-S-T-O-R-Y’ e ‘Double Take’ vários anos atrás, reitera seu status como um grande documentarista, nos presenteando com a magnum opus de uma carreira que ainda tem muito a nos contar.

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