Uma não tão breve história da ARM (parte 2): da quase falência à Advanced Risc Machines

Acorn Archimedes A310

Eu terminei a primeira parte da história da Acorn deixando várias perguntas sem resposta. Chegou a hora de tentar respondê-las! A principal talvez seja: como quase ninguém fora da Inglaterra conhece a Acorn Computers?

Chama a atenção como uma empresa que tinha nas mãos uma tecnologia com tanto potencial, como o ARM1, não prosperou para se tornar uma gigante da computação pessoal no mundo inteiro. Vimos que o sucesso do BBC Micro permitiu que a empresa desenvolvesse a sua interface Tube, que acabou levando ao desenvolvimento do primeiro chip comercial com um conjunto de instruções reduzidas (RISC), batizado de  ARM (Acorn Risc Machine). Mas não era só isso.

Tinha muita coisa acontecendo ao mesmo tempo na Acorn a partir de 1982. O BBC Micro era um sucesso, mas não era barato. Com preço beirando as £300, era consideravelmente mais caro que os seus concorrentes da Sinclair, o ZX81 e o recém-lançado ZX Spectrum.

A Acorn precisava de um computador barato que pudesse competir com o ZX Spectrum na faixa de £100. A solução estava, mais uma vez, na inovação e na engenhosidade de Steve Furber e Sophie Wilson.

Electron

Tendo dois doutores em Física na equipe (Furber e Hauser), não é de se estranhar a temática “atômica” para a nomenclatura dos produtos. Depois do Atom (o primeiro computador da Acorn) e do Proton (rebatizado como BBC Micro), a Acorn iniciou em 1982 o desenvolvimento do seu futuro computador de £100, o Electron. O plano era lançá-lo ainda em 1982, aproveitando as vendas de Natal, mas as coisas não foram tão simples.

Para poder reduzir os custos de produção e manter o preço na faixa de £100, a Acorn empregou uma técnica chamada ULA (Uncommited Logic Array) na produção dos circuitos integrados da placa do Electron.

A ideia das ULAs é similar a uma casa pré-fabricada, na qual se tem à disposição estruturas prontas como paredes, paredes com portas, paredes com janelas, etc. O construtor “monta” a casa do jeito que ele preferir, usando essas partes já pré-fabricadas. O custo é baixo porque o fabricante das peças não precisa “personalizar” a fabricação das peças. Ele fabrica paredes, paredes com porta, paredes com janela, que servirão para todos os seus clientes, independentemente da casa que será fabricada.

Em uma ULA, o fabricante produz um chip “genérico” com uma série de transistores e outros componentes no seu interior, mas que não estão conectados, não executam nenhuma função. As lógicas ou funções que aquele chip irão realizar são definidas depois, com a adição de apenas uma camada de conexão, conectando apenas os componentes necessários de acordo com as funções que o chip realizará.

Em vez de se personalizar a fabricação do chip, o que se customiza é apenas a camada de conexão entre os componentes. O custo de fabricação de cada chip é reduzido consideravelmente, já que este chip “genérico” pode ser vendido a diversos clientes. O fabricante não precisa adequar a sua linha de produção exclusivamente para um chip, um cliente.

Outro efeito do uso de ULAs é a redução da quantidade de componentes na placa, já que cada ULA contém vários componentes combinados. Compare as placas do BBC Micro e do Electron nas imagens abaixo. O BBC Micro tinha em torno de 102 chips na sua placa lógica, enquanto o Electron tinha em torno de 12.

É uma redução considerável na quantidade de componentes, que simplifica enormemente a fabricação e reduz o custo do computador.

Mas nem tudo são flores. A simplificação e a versatilidade do uso de ULAs tem um preço: performance e calor. É de se imaginar que a aglomeração de vários componentes dentro de um único circuito integrado prejudica a dissipação de calor, faz o chip esquentar e perder performance — ou mesmo deixar de funcionar. Além disso, há a complexidade inerente de desenhar a ULA. Quanto mais componentes adicionados a uma ULA, mais complexo era o seu projeto e maior a probabilidade de não funcionar direito. No desenvolvimento do Electron, isso se mostrou uma custosa verdade.

Furber foi o responsável direto pelo desenho das ULAs do Electron e, apesar do seu talento e do cuidado dedicado ao projeto, as ULAs apresentaram problemas, atrasando o desenvolvimento e a produção do Electron. A Acorn só anunciou publicamente o Electron em agosto de 1983, com previsão de estar disponível nas lojas no fim daquele ano.

Mais de £4 milhões foram investidos em publicidade, e os reviews da mídia especializada foram favoráveis. O computador atraiu a atenção de varejistas e foi considerado a melhor opção de compra de computador para se ter em casa. Era um pouco mais caro que o ZX Spectrum, mas entregava mais potência e desempenho.

Com estimativa de vender 100 mil unidades no Natal de 1983, em outubro o Electron já havia recebido mais de 150 mil pedidos. Seria outro sucesso de vendas, não fossem as ULAs. Em novembro daquele ano, a Acorn só havia conseguido produzir 25 mil unidades e acabou “perdendo o bonde” das vendas do Natal.

A Acorn acelerou a produção do Electron ao longo de 1984, mas já era tarde. O mercado havia mudado e a demanda não estava mais lá. O mercado britânico havia sido pulverizado com dezenas de fabricantes de computadores domésticos de baixo custo; do outro lado do Atlântico, o IBM PC/AT 286 e um certo Macintosh faziam computadores de 8 bits conectados a um televisor parecerem coisas ancestrais. Para o fim de 1984, a Acorn tinha mais de 250 mil Electrons empilhados em seus depósitos e fechou o ano com perdas na ordem de £11 milhões.

1983 também foi o ano em que a Acorn tentou emplacar o BBC Micro no mercado educacional americano. O início, mais uma vez, parecia promissor. Em outubro daquele ano, a divisão americana da Acorn relatou US$21 milhões em pedidos de escolas e afirmava ter uma rede de mais de 1.000 distribuidores em todo o país.

A Apple já via a Acorn como uma séria rival no mercado. O BBC Micro era mais rápido que o Apple II, acompanhava um display colorido e podia exibir textos e gráficos na mesma tela. Mas o que acabou inviabilizando o BBC Micro no mercado americano foi algo que a Apple paulatinamente faria desaparecer de seus produtos nas décadas seguintes: conexões I/O e expansibilidade. Uma das principais características do BBC Micro eram suas possibilidades de expansão. A parte traseira do BBC Micro permitia que o usuário conectasse praticamente qualquer coisa que existia como acessório para os computadores da época. 

Tamanha quantidade de portas e conexões fazia com que o BBC Micro fosse um grande emissor de “ruído” eletromagnético. Enquanto na Europa as regras eram menos rígidas nesse assunto, nos EUA o buraco era mais embaixo com respeito às exigências de isolamento e blindagem eletromagnética. A Comissão Federal de Comunicações dos EUA (Federal Communications Commission, ou FCC) não aprovou o projeto do BBC Micro e exigiu que todas as conexões da traseira do computador fossem devidamente isoladas.

Isso aumentou enormemente o custo do BBC Micro e, no fim de 1984, as operações da Acorn nos EUA já acumulavam perdas de mais de £2 milhões. No início de 1986, a Acorn “jogou a toalha” e encerrou suas operações no país, conforme informado em uma discreta nota de canto de página na revista Acorn User, de fevereiro de 1986.

Os problemas com o Electron e a falida tentativa de entrar no mercado americano foram demais para a Acorn — para o fim de 1985, a empresa estava à beira da falência. Suas ações foram suspensas na bolsa de Londres e o fim parecia próximo. A salvação viria falando italiano.

A Olivetti, que aqui no Brasil conhecíamos bem por suas máquinas de escrever, era nesse momento a segunda maior fabricante de computadores da Europa, atrás apenas da IBM europeia. Em fevereiro de 1985, com um investimento inicial de £12 milhões, a Olivetti adquiriu 49% da Acorn. Antes do fim daquele ano, os italianos injetaram mais £4 milhões e passaram a ter 80% do controle da Acorn. Chris Curry deixou a empresa e Hermann Houser se tornou vice-presidente de pesquisa da Olivetti, deixando de acompanhar diretamente o dia a dia da Acorn.

O mais incrível da chegada da Olivetti é que os italianos não tinham ideia do desenvolvimento do chip ARM pela Acorn! Como vimos na parte 1 dessa história, a primeira amostra do processador ARM desenhado pela Acorn só chegou em abril de 1985. A Olivetti comprou o controle acionário da Acorn sem conhecer a principal e mais promissora tecnologia que a empresa vinha desenvolvendo. Foi somente depois do negócio concretizado — e o dinheiro efetivamente injetado na empresa — que Wilson e Furber teriam dito à equipe da Olivetti “agora que vocês compraram a empresa, nós podemos dizer no que realmente estamos trabalhando”.

Como eu disse no início do texto, tinha muita coisa acontecendo ao mesmo tempo na Acorn nesse período. O desenvolvimento do BBC Micro continuava sob contrato com a BBC. Após o lançamento em 1981 do Model A, vieram ainda o Model B, o B+64, o B+128, o Master 128 e o Master Compact. Some-se a isso o desenvolvimento do Electron, a falida tentativa no mercado americano, a crise financeira e a chegada da Olivetti. Por trás de tudo isso, ainda havia o desenvolvimento do processador ARM. Não era pouca coisa!

Em 1986, estava claro que o potencial do chip ARM e como ele parecia estar fortemente ligado ao futuro da computação pessoal. A Acorn já não nadava sozinha nessa praia. A Sun Microsystems anunciou o SPARC (Scalable Processor Architecture), cujo desenvolvimento e design também foi influenciado pelas mesmas pesquisas de Berkeley que inspiraram a Acorn; a IBM lançava o IBM RT PC (RISC Technology Personal Computer), equipado com seu novo processador RISC, o IBM ROMP; a Hewlett-Packard tinha o PA-RISC; e até a Intel, veja só você, tinha seu próprio processador RISC inspirado nos trabalhos de Berkeley, o i960.

No início dos anos 1980, durante uma viagem à Califórnia, Hauser conheceu um certo centro de pesquisa de uma grade empresa americana que estava desenvolvendo um sistema operacional revolucionário com janelas sobrepostas e controlado por um mouse. Sim, o Xerox Palo Alto Research Center, que falei aqui, influenciou também a Acorn.

PARC (Xerox)

50 anos atrás, um computador definiu como seria a computação pessoal

Hauser ficou fascinado e decidiu que os futuros computadores da Acorn também teriam um sistema operacional como aquele. Mas ele ficou tão entusiasmado que a Acorn recrutou um grupo de cientistas e engenheiros de computação britânicos e montou, também em Palo Alto, o ARC – Acorn Research Centre (sim, centre — afinal, eles são britânicos). A função do ARC era criar um sistema operacional WIMP (Windows, Icons, Menus, Pointer) — o que hoje chamamos de GUI 1 — ao estilo do que a Xerox estava desenvolvendo no PARC. O sistema da Acorn se chamaria ARX e, enquanto o software era desenvolvido no ARC (em Palo Alto), o computador que o utilizaria estava sendo desenvolvido na sede da Acorn (na Inglaterra).

Acorn Archimedes

O primeiro computador da Acorn baseado totalmente na arquitetura RISC tinha uma versão 32 bits do chip ARM recém-criado pela empresa, rodando a 8MHz e renomeado como ARM2. Batizado de Archimedes, ele tinha 512KB de RAM 2, custava em torno de £800 e foi anunciado em junho de 1987 como “o mais rápido entre todos os micros”. 

O ARX não ficou pronto a tempo, e o Archimedes saiu de fábrica com um Acorn Basic modificado às pressas para conter uma interface gráfica WIMP no “estilo Mac”. O sistema foi batizado de Arthur, nome que na época ninguém entendeu como mostra a mesma edição da Acorn User. Nas versões seguintes do Archimedes, o sistema foi renomeado como RISC OS. Hoje, sabe-se que Arthur era uma piada interna na Acorn.

Com o atraso no desenvolvimento do ARX pelo time na Califórnia, a tarefa de criar um sistema operacional para o Archimedes recaiu sobre a equipe da sede da empresa em Cambridge, e conta a lenda que o trabalho começou apenas cinco meses antes do lançamento do Archimedes. O pouco tempo destinado ao desenvolvimento do software acabou levando ao nome Arthur, que seria um acrônimo para A RISC by THURsday — algo que, neste contexto, poderíamos traduzir livremente como “um sistema pra quinta-feira”.

Os primeiros reviews do Archimedes foram muito favoráveis. A revista Personal Computer World, na sua edição de agosto de 1987, afirmou que “benchmarks são inadequados para transmitir a sensação de poder que exala no seu uso; praticamente tudo o que você faz acontece instantaneamente”. A linha de teclas de funções vermelhas no teclado provocou protestos dos concorrentes, já que induzia os consumidores a pensarem que o Archimedes era uma continuidade do BBC Micro com a chancela da BBC, o que não era o caso.

Com o Archimedes, a Acorn havia alcançado um nível impressionante de integração, e controle de hardware e software. Ela desenhava seu próprio processador em uma tecnologia completamente nova, produzia um computador completo sobre esse processador e ainda produzia todo o seu software — tudo isso sendo uma empresa com menos de 500 funcionários.

Entretanto, o Archimedes enfrentou uma forte concorrência. No mercado corporativo, o padrão IBM PC já era dominante; no mercado doméstico, estavam surgindo uma série de máquinas baseadas no processador Motorola 68000 — que, apesar de não ter a potência do Archimedes, tinha uma oferta muito maior de software, em especial jogos.

O Commodore Amiga e o Atari ST, ambos lançados em 1985, também tinham um sistema operacional com interface gráfica e eram muito mais baratos que o Archimedes. A base de software disponíveis para o Archimedes nunca chegou nem perto daquela disponível para os micros no padrão IBM PC.

A Acorn seguiu desenvolvendo o Archimedes até meados dos anos 1990, mas as vendas nunca decolaram e acabaram apenas no nicho educacional. Algumas centenas de milhares de Archimedes foram vendidos, pouco comparado aos 1,5 milhão de BBC Micro, 2 milhões de Atari STs e 5 milhões de Amigas.

Rumo ao final dos anos 1980, a direção da Acorn e da Olivetti estava decidida a vender a tecnologia ARM. Estava claro que a pequena equipe da Acorn não daria conta de desenvolver — de maneira satisfatória — a tecnologia, e a Olivetti não conseguiria investir o dinheiro necessário. A salvação viria justamente da sua competidora que também tinha nome de fruta.

Apple Newton

A Apple começou o desenvolvimento do Newton em 1987, sob o comando de John Sculley, que havia chutado Steve Jobs da empresa alguns anos antes — você deve conhecer bem essa história.

O processador usado no Newton era o Hobbit, que estava sendo desenvolvido pela AT&T e também era baseado em instruções RISC. O problema é que o Hobbit era extremamente… problemático! Todas as unidades que a Apple recebia eram cheias de bugs e defeitos de fabricação, o que estava atrasando o desenvolvimento do Newton. Era necessário um substituto, e o chip ARM da Acorn era um excelente candidato. Com custo reduzido e alta eficiência no consumo de energia, fazia todo o sentido sua aplicação em um dispositivo portátil alimentado por baterias.

Mas havia um problema: a Acorn era uma competidora da Apple e comercializava computadores potentes, com uma interface gráfica tão sensacional quanto a do Macintosh — a um preço menor. Não fazia sentido colocar o futuro do Newton nas mãos da concorrência. Assim, a Acorn, a Apple e a VLSI (que fabricava os chips ARM da Acorn) montaram uma joint venture, na qual a Acorn e a Apple teriam 46% e a VLSI, 8%; em 3 de dezembro de 1990, nasceu a Arm Ltd.

Como a tecnologia ARM agora não estava mais vinculada exclusivamente à Acorn, a sigla ARM foi renomeada para Advanced RISC Machine, e a empresa então nomeada como Advanced RISC Machines Limited.

A equipe da Arm Ltd. era formada por alguns engenheiros transferidos da Apple e da Acorn, totalizando 12 pessoas. De modo surpreendente, os criadores do chip ARM na Acorn não foram transferidos para a nova empresa. Furber deixou a Acorn em 1990 e seguiu carreira acadêmica como professor na Universidade de Manchester; Wilson continuou como funcionária da Acorn e contribuiu na Arm Ltd. como consultora.

Como sabemos, infelizmente o Newton durou pouco. Com a crise da Apple no final dos anos 1990, a Maçã vendeu sua participação na Arm Ltd. por mais de US$1 bilhão — um retorno gigantesco para o investimento inicial de apenas US$3 milhões! Não é exagero dizer que a venda das ações na Arm Ltd. tiveram um papel crucial em salvar a Apple no final dos anos 1990 (junto à volta de Jobs, à reorganização da empresa e ao lançamento do iMac original).

O primeiro CEO 3 da ARM, Robin Saxby, sabia que precisava expandir a tecnologia ARM para outros clientes se quisesse ver a jovem empresa prosperando. Para transformar a Arm Ltd. no que ela viria a ser, para consolidar a tecnologia ARM como um padrão mundial, Saxby tinha clareza dos passos que deveria seguir: não competir com a Intel na fabricação de processadores e dominar o mercado de dispositivos portáteis alimentados por baterias.

Mas isso fica pra terceira e última parte dessa história…

Referências:

  • Herman Houser explica os problemas de aprovação do BBC Micro na FCC dos EUA em um vídeo.
  • The Arm Story Part 2 : Archimedes to Advanced RISC Machines

Notas de rodapé

1    Graphical user interface, interface gráfica de usuário.
2    Random access memory, ou memória de acesso aleatório.
3    Chief executive officer, ou diretor executivo.
Adicionar aos favoritos o Link permanente.