Marcelo Rubens Paiva: “Papel do cinema e da literatura é lembrar”

Autor do livro “Ainda estou aqui”, que deu origem ao filme que tenta representar o Brasil no Oscar, o escritor Marcelo Rubens Paiva fala sobre a importância de contar a história da ditadura e o papel de sua mãe, Eunice.O escritor Marcelo Rubens Paiva tinha 11 anos quando a casa onde morava com os pais e quatro irmãs foi invadida por militares, em janeiro de 1971. A vida da família, até então feliz, mudou radicalmente naquele dia. O pai dele, o engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva, foi levado pelos militares e nunca mais voltou: virou um dos “desaparecidos da ditadura”, um eufemismo usado na época para falar de pessoas que eram assassinadas sob tortura e tinham seus corpos descartados.

Durante anos, a família ficou sem saber se Rubens Paiva estava morto ou vivo. Seu atestado de óbito só seria entregue 25 anos depois, em 1996. Isso graças à luta de sua mulher, Eunice Paiva, que tinha 41 anos quando o marido “desapareceu”. Ela teve que cuidar dos filhos, reorganizar a vida e brigar, o tempo todo, não só pela sobrevivência da família, mas também para ter respostas sobre a morte do marido.

A matriarca da família Paiva se reinventou: estudou direito, virou defensora dos direitos humanos. E morreu em 2018, aos 86 anos, depois de viver anos com Alzheimer, perder a memória e ficar totalmente dependente de cuidadores e dos filhos.

A história da família e de Eunice já era conhecida pelos leitores de Marcelo, que lançou Ainda estou aqui em 2015 e também é autor, entre outros, do best-seller Feliz Ano Velho. Agora, a história ganha as telas com o filme Ainda Estou Aqui, baseado na obra de Paiva. O longa foi aclamado no Festival de Veneza, onde ganhou o prêmio de melhor roteiro. O filme também é a principal aposta para representar o Brasil no Oscar, na categoria de melhor filme internacional.

“Acho que o impacto mundial do filme é a necessidade de valorizar mulheres que não se entregaram”, disse Marcelo Rubens Paiva em conversa com a DW. Leia abaixo trechos da entrevista.

DW: O longa-metragem Ainda Estou Aqui venceu prêmio de melhor roteiro após a estreia no Festival de Veneza em março deste ano, e foi aclamado internacionalmente pelo público e pela crítica. O que significa para você o alcance e a difusão de um filme que fala sobre a ditadura brasileira, num momento em que tantos países do mundo estão polarizados, com guinadas conservadoras?

Marcelo Rubens Paiva: Eu acho que o filme usa a ditadura brasileira para falar de algo maior, que é a história de uma família que acaba sendo vítima de incongruência política, da falta de respeito, do descumprimento das leis e da intolerância. Ele é sobre a realidade brasileira, mas, do jeito que a gente pensou, ele poderia estar em vários lugares.

A obra conta a história de uma família que tem sua casa invadida. Isso acontece em muitos lugares. Eu acho que a gente está sendo convidado para tantos festivais no mundo todo justamente porque vários países estão vivendo essa volta do fascismo. A gente vê a extrema direita super forte na Itália, na Alemanha, na França.

E agora o Trump voltou à Casa Branca. O que acha que isso significa?

Eu já esperava a vitória dele porque o mundo está ficando cada vez mais “trumpista”. O que interessa agora nesse momento é não pagar impostos, barrar imigrantes e cada um pensar em si. A gente vê isso em vários lugares do mundo e viu nas últimas eleições municipais no Brasil também. As pessoas só pensam em empreendimentos, em atividades particulares. Não pensam mais no conjunto.

Eu estava acordado quando ele foi eleito e fiquei chocado porque foi de lavada. Mas vi o discurso dele após a vitória e acho que é um pouco como a humanidade está pensando mesmo, que é: “Vamos fechar as fronteiras, queimar petróleo e viver esses últimos momentos do planeta, antes que a gente mesmo acabe com ele.”

No Brasil, há pessoas que dizem ter saudades da ditadura e que elogiam torturadores. Você espera que o filme ajude a trazer mais informação e educação histórica sobre o que foi a ditadura militar no Brasil?

Tomara que o filme traga essa educação histórica mesmo. Meu papel como escritor sempre foi esse.

Eu lembro que estava na Alemanha quando o filme “A Lista de Schindler” estreou [em 1993]. Foi uma febre, os cinemas ficaram lotados. Eram filas e filas. Isso porque as novas gerações queriam saber dos horrores que tinham acontecido no nazismo.

Acho que no Brasil está acontecendo algo parecido. Depois da gente passar por um período onde só havia gente indo às ruas elogiar a ditadura e o AI-5, as pessoas agora querem saber o que de fato aconteceu. Afinal, já faz muito tempo. O golpe foi há 60 anos.

Eu acho que o papel da literatura, do cinema é lembrar mesmo. Assim como existem museus e memoriais sobre o Holocausto, acho que precisa existir uma cultura de memória do autoritarismo na América Latina. Tem que ter filmes, museu, para que seja lembrado e para que não volte a acontecer.

Os 60 anos do golpe, completados esse ano, passaram em branco, na sua opinião?

Não passou em branco para todo mundo. Mas acho que a data ficou ofuscada por causa do medo que o Brasil ficou dos militares, já que por pouco eles não aderiram ao golpe do Bolsonaro [em 8 de janeiro de 2023]. Acho que o golpe só não aconteceu porque o Exército e a Marinha não entraram. Mas a Aeronáutica entrou. Foi por pouco que não colocaram os tanques nas ruas e foram para cima de novo. Então eu acho que o país, principalmente a classe política, ficou um pouco traumatizado e decidiu pôr panos quentes nos crimes do passado.

Você concorda que no Brasil existe uma cultura do “deixa pra lá”? Como foi o caso da anistia, sancionada em 1979, que acabou deixando os militares impunes…

Sim, o Brasil sempre “deixa pra lá”. Desde a escravidão, quando queimaram os arquivos. Nunca fizeram uma compensação. E ficou a bagunça que ficou, um país que ainda é extremamente escravagista, preconceituoso e racista.

Sim, os militares se sentem incentivados a dar um golpe porque nada aconteceu com eles. Juscelino [o ex-presidente Juscelino Kubitschek] sofreu duas tentativas de golpe por parte do Burnier [o brigadeiro João Paulo Burnier, morto em 2000]. E o mesmo Burnier foi peça chave no golpe de 1964 e também foi quem prendeu meu pai em 1971, o que quer dizer que sempre fica essa impunidade.

Inclusive os militares têm uma aposentadoria que é completamente diferenciada da população, ganharam várias vantagens no governo Bolsonaro.

Nós sempre vivemos nessa espécie de chantagem dos militares contra nós, civis, que deveriam ser quem manda naqueles que têm armas.

Assim como sua mãe, Eunice Paiva, muitas mulheres ficaram segurando a barra de filhos após companheiros serem mortos ou presos, atuando nos bastidores.

A minha mãe é uma heroína mesmo. Ela e muitas outras mulheres eram tudo isso que você falou.

A gente vive em uma sociedade patriarcal, né? Existe aquela frase horrorosa: “Atrás de cada homem existe uma grande mulher”, sendo que não é nada disso. Na verdade, do lado de um grande homem existe uma grande mulher. Os dois têm a mesma importância.

A minha mãe exerceu um papel mais importante na nossa vida do que o meu pai. Eu fui perceber isso depois de ter filho. E eu acho que o impacto mundial do filme vem justamente dessa necessidade de valorizar as mulheres que não se entregam, que mesmo vítimas de tortura, de mortes horrorosas, elas se reerguem, repensam suas vidas, se reconstroem.

No livro, você conta que a sua mãe sempre dizia: “Os Paiva não choram em público”. Fernanda Torres teve um ataque de choro após a exibição em Cannes. E você, conseguiu ver o filme sem chorar?

É, uma coisa é chorar em público. Outra coisa é você ver a sua vida toda retratada na minha tela, ainda mais na terra da minha avó, que veio da Itália, com uma plateia lotada. E acabou virando um programa de família casual, porque uma irmã mora na Suíça, outra na França, meus sobrinhos estavam na Inglaterra. Eu também levei meus dois filhos. Foi muito tocante. Aí eu chorei sim. Não chorei escrevendo o livro, mas em Veneza chorei muito. Não tem como, né?

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