O divórcio entre a OpenAI e a Microsoft já começou

Satya Nadella e Sam Altman

Quem acompanhou a saga da demissão temporária de Sam Altman como CEO 1 da OpenAI, no final do ano passado, deve se lembrar de como Satya Nadella, CEO da Microsoft, foi importante para a história atingir seu desfecho.

Na época, eu detalhei o lance a lance do motim nesse artigo, mas o resumo é: depois de ter investido mais de US$10 bilhões na OpenAI e de ter se apoiado no ChatGPT para todas as IAs 2 da Microsoft, Nadella esteve bem perto de ver tudo isso ir por água abaixo.

Isso porque, após o conselho da OpenAI anunciar — de surpresa — a demissão de Altman, praticamente todos os engenheiros da companhia ameaçaram ir embora com ele. Ao longo dos dias seguintes, Nadella agiu como negociador para tentar assegurar o retorno de Altman (e do status quo) à startup, o que acabou dando certo.

No pós-jogo da zaragata, Nadella se firmou como a referência adulta em um mercado repleto de moleques cuja impulsividade só não é maior do que a própria inexperiência. Por outro lado, ele também se reconheceu como refém da empresa que acabara de salvar, incrivelmente vulnerável em um mercado que não perdoa patinadas. A Apple que o diga.

Talvez por isso, em meio ao vai-não-vai da readmissão de Altman e antes da confirmação definitiva de seu retorno, Nadella tenha tentado uma manobra interessante: ele anunciou que Altman se juntaria à Microsoft para liderar uma nova divisão de pesquisa de IA, e disse que quaisquer engenheiros que decidissem deixar a OpenAI teriam emprego garantido para voltar a trabalhar com seu antigo líder na nova casa.

Isso, como sabemos, acabou não acontecendo. O que não significa que Nadella tenha deixado essa ideia de lado.

Casamento às cegas

Já afirmei uma vez e insisto: se foi sorte ou se foi visão, tanto faz. Deve ter sido um pouco de cada. Mas Nadella apostou na empresa certa no momento certo, quando a OpenAI percebeu que ser uma empresa sem fins lucrativos não seria suficiente para desenvolver a AGI 3 e foi atrás de capital.

Quando a Microsoft investiu US$1 bilhão (e outros US$10 bilhões após o lançamento do ChatGPT) na subsidiária com fins lucrativos que a OpenAI havia criado, ela passou a ser proprietária não apenas de 49% dessa subsidiária, como também de todas as tecnologias desenvolvidas por ela 4.

Ah! E vale mencionar que grande parte desses bilhões de dólares em investimento não foi em dinheiro vivo, mas sim em créditos para uso do Microsoft Azure, que é a estrutura de nuvem onde roda praticamente tudo o que a OpenAI oferece.

Se a coisa parece complicada, é porque é. Atualmente, seria mais preciso comparar a Microsoft e a OpenAI a gêmeos siameses, do que a entidades casadas. Sem o Microsoft Azure, não há OpenAI. E sem a OpenAI, não há Microsoft Copilot 5.

É inegável que essa união tenha sido infinitamente positiva para os dois lados. Mas quem acompanha de perto as minúcias do mercado de tecnologia sabe que, dado tempo suficiente, é inevitável que, por mais alinhadas que sejam duas empresas, mais cedo ou mais tarde elas passam a competir entre si.

Troca de família

Bem, lembra que eu disse que Nadella não havia desistido da ideia de ter uma divisão interna de IA para depender menos da OpenAI? Pois é. No dia 19 de março de 2024, ele anunciou a contratação de Mustafa Suleyman, então CEO da Inflection AI, uma startup que vinha correndo por fora na disputa entre os principais LLMs 6 do mercado, e cujo principal produto é o Pi; um chatbot munido de uma personalidade otimista e gentil.

Daquele dia em diante, Suleyman passou a atuar como CEO da Microsoft AI, a subsidiária que havia sido idealizada para Sam Altman. E não foi apenas Suleyman que deixou a Inflection AI pela Microsoft. Junto dele, o cofundador Karén Simonyan e praticamente toda a equipe de engenharia da empresa seguiram o mesmo caminho, ao mesmo tempo em que a Microsoft anunciou um acordo de US$650 milhões para vender acesso (sem exclusividade) ao modelo da Inflection por meio do Microsoft Azure. Complicado? Pode apostar.

Na prática, a Microsoft havia comprado a Inflection sem ter precisado comprar a Inflection, garantiu o direito de se explorar um dos principais concorrentes do ChatGPT e, de quebra, reduziu bastante sua dependência da OpenAI.

Foi aí que ligou o sinal de alerta da FTC 7.

Big Brother

Durante as negociações finais para o retorno de Altman à OpenAI, uma das exigências da Microsoft foi passar a ter um observador no novo conselho da startup. Essa pessoa seria uma babá os olhos e ouvidos da Microsoft lá dentro, a fim de evitar novas surpresas potencialmente catastróficas.

De lá para cá, o mercado mudou bastante, como seria inevitável para um segmento tão efervescente. Uma das principais movimentações, é claro, foi a parceria entre a Apple e a OpenAI, a fim de integrar o ChatGPT aos produtos da Maçã.

Em maio, quando isso ainda era uma informação extra-oficial, o veículo The Information informou que Nadella havia se encontrado com Altman para expressar sua preocupação com a aproximação entre a OpenAI e a empresa de Tim Cook.

Nadella, que naturalmente já sabia que o acordo não era apenas um rumor, questionou Altman sobre o que os novos laços com Cupertino significariam para a vantagem competitiva que a Microsoft tinha graças à parceria (até então exclusiva) com a OpenAI. Gosto de imaginar Altman invertendo a situação e questionando Nadella sobre a pseudo-aquisição da Inflection, seguido de um silêncio desconfortável enquanto ambos olhavam para suas saladas superfaturadas em algum restaurante da Baía de San Francisco, cientes de que a lua de mel havia acabado.

O que nos traz aos últimos dias e à reportagem da Bloomberg, a qual disse que Phil Schiller, ex-chefe de marketing mundial da Maçã e atual Apple Fellow, poderia em breve ser confirmado como um novo membro observador no conselho da OpenAI, como parte dos termos que possibilitaram o acordo a Maçã e a startup 8.

Estrategicamente, isso deixaria a Apple em uma posição extremamente favorável, já que ela teria acesso a boa parte das decisões de médio/longo prazo da OpenAI, incluindo aspectos da parceria com a Microsoft 9.

O problema é que essa situação também criaria um enorme conflito de interesses multidimensional entre as três empresas, especialmente agora que a Microsoft já não guarda mais segredo sobre a intenção de se tornar independente da OpenAI, ao mesmo tempo em que acaba de lançar uma enorme campanha apoiada em recursos de IA para acirrar a concorrência entre sua linha Surface e os MacBooks.

De qualquer forma, essa sinuca de bico corporativa durou poucos dias. Na última quarta-feira (10/7), uma série de anúncios sucessivos marcou a renúncia da Microsoft à vaga de observadora no conselho da OpenAI, a rejeição oficial da informação de que Schiller se tornaria um membro observador do mesmo conselho, e o anúncio de que a OpenAI buscará “novas formas de informar e se engajar com parceiros estratégicos”.

Foi o equivalente corporativo àquele “a gente se fala”, que todos sabem que significa o exato oposto.

Brincando com fogo

De acordo com a Microsoft, ela decidiu abrir mão da sua vaga de observação no conselho porque “está satisfeita com o progresso que viu” na forma como a OpenAI vem sendo gerida desde o retorno de Altman.

Se essa justificativa não lhe convenceu, você não está sozinho. Se tem uma coisa que todos sabemos sobre as empresas de tecnologia, é que elas não abrem mão voluntariamente de qualquer tipo de poder ou de controle. Mas o Financial Times veio nos salvar.

Segundo as fontes da publicação, tanto a Apple quanto a Microsoft e a OpenAI desistiram da coisa toda porque concluíram que esse estreitamento da relação aumentaria ainda mais o tamanho do alvo que a FTC está colocando nas costas de todo mundo. A má notícia para elas é que, segundo a Reuters, essa desistência não mudou em nada a atenção que a FTC está prestando nesse mercado.

Isso porque após a não-chame-de-aquisição da Inflection, a FTC anunciou uma investigação para identificar se a Microsoft havia burlado a lei e, de quebra, se organizou com o Departamento de Justiça do país para estudar o domínio da Microsoft, da OpenAI e da NVIDIA no segmento de IA 10.

Se essa investigação dará em algo, é difícil prever (eu aposto que não). Porém, o fato de a Microsoft e a OpenAI estarem terminando a semana um pouquinho mais distantes do que elas estavam quando a semana começou é extremamente relevante.

É bem possível que, ao longo dos próximos meses, a Microsoft passe a falar mais sobre as iniciativas da Microsoft AI (como os notáveis modelos Phi), e menos sobre a parceria com a OpenAI. Aliás, eu não me admiraria se alguém dentro da própria Microsoft tivesse vazado a informação sobre Schiller para a Bloomberg, sabendo que isso catalisaria o crime perfeito: usar a investigação do FTC para benefício próprio e ter no governo americano o melhor álibi do mundo para obrigar um divórcio.

Notas de rodapé

1    Chief executive officer, ou, diretor executivo.
2    Inteligências artificiais.
3    Artificial general intelligence, ou inteligência artificial geral.
4    O que teria vindo bastante a calhar caso tivesse dado certo a ideia de contratar Altman como CEO da Microsoft AI.
5    E muito menos a avaliação de mercado atual de US$3,3 trilhões da gigante de Redmond.
6    Large language models, ou grandes modelos de linguagem.
7    Federal Trade Commission, ou Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos.
8    Ou seja, todo mundo precisa da OpenAI, mas ninguém confia nela.
9    Na prática, os observadores não participariam de todas as reuniões do conselho, mas sim de reuniões periódicas. Ainda assim, se essa presença não fosse importante, a Microsoft e a Apple não a teriam exigido.
10    E quando lembramos que a Amazon é a principal investidora da Anthropic, outra potência do mercado de IAs, percebemos que as novas empresas são apenas veículos para continuar a concorrência das velhas empresas.
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