“E se o Superman resolvesse descer voando, arrancasse o telhado da Casa Branca e tirasse o presidente dos Estados Unidos de dentro do Salão Oval? Quem o impediria?”
Começo o texto com essa citação do personagem de David Harbour no infame Esquadrão Suicida (2016), porque os trailers de Thunderbolts* passaram essa sensação tantas vezes que, para muitos, esse filme parecia uma tentativa da Marvel de conseguir seu próprio grupo de mercenários descartáveis nas telonas. No entanto, por mais que haja realmente muitas semelhanças, a execução dessa aventura dramática é muito mais interessante, justamente porque resgata um storytelling que fez da Marvel Comics um fenômeno nos EUA na década de 1960: o foco nas pessoas que estão dentro dos uniformes. Trabalhando com essa filosofia de que o CPF importa mais que o CNPJ, a Marvel parece voltar para os trilhos, construindo um longa que se destaca dentre as últimas produções do estúdio.

Por ironia do destino, David Harbour retorna em outro filme sobre personagens descartáveis de quadrinhos, mas agora em um papel de destaque, como o bonachão e sonhador Guardião Vermelho, o ícone da falecida União Soviética, que busca nos EUA um papel funcional, após anos de abandono e esquecimento. Seu personagem é uma síntese muito boa desse grupo de anti-heróis relutantes que precisa de união para tentar sobreviver e buscar sua vingança. Diferentemente do Esquadrão Suicida, eles não são “os piores dentre os piores”, tampouco os “piores heróis do mundo”, embora grande parte do público os veja assim. Na verdade, o filme entra em uma parte mais cinzenta, na qual eles são trabalhadores. E veja só que simbólico lançarem esse filme justamente no Dia Internacional do Trabalhador. Eles exercem suas missões, sejam elas de espionagem, assassinatos ou transporte, porque são esses trabalhos que dão sentido a suas vidas solitárias. Se não fizerem isso, não são pagos e as contas não fecham. Mas e quando o trabalho perde a graça? E quando o brio acaba? E quando sua única motivação para acordar todo dia e se submeter a essa rotina é fechar as contas? Como fica o indivíduo?
Partindo desse ponto, o filme desenvolve sua trama muito pela ótica de Yelena Belova, interpretada com maestria por Florence Pugh, que foi a grande adição ao acervo Marvel nessas fases pós-Ultimato. A superespiã conduz a trama por meio dessa falta de sentido na rotina laboral. Ela não tem mais brio em trabalhar, ela não consegue adrenalina nem mesmo desviando de balas. Tudo se tornou tão previsível que tudo que resta a ela é a vida pessoal. O problema é que ela literalmente dedicou sua vida e existência a esse emprego – não por vontade própria, é verdade. Então, quando só o que ela tem é a família e amigos, ela percebe que seu único contato afetuoso é seu pai, o Guardião Vermelho, com quem não fala a mais de um ano. Em meio a crises de alcoolismo e a busca por qualquer coisa que remeta brevemente à emoção que ela um dia sentiu, Yelena procura novamente no trabalho uma forma de tentar escapar desse vazio. Ela pede uma “promoção” a sua chefe, que promete a ela trabalhos mais dignos de super-heróis, contanto que ela realize uma última missão: eliminar uma ameaça dentro de um cofre enterrado a quase 2 km abaixo do chão.

O problema é que isso tudo era uma grande armação, na qual a contratante reuniu outros mercenários para irem ao mesmo lugar, fazendo com que um eliminasse ao outro. As coisas acabam não saindo conforme o planejado após uma conversa entre esses trabalhadores, que debatem suas situações e percebem que a única saída para eles será a união pela mesma causa. E aí que entra outro ponto interessantíssimo do filme, que é a aposta em personagens que são extremamente parecidos para formar esse grupo.
A Yelena é uma agente de elite com armas e agilidade acima do normal, o Agente Americano (Wyatt Russell), o Soldado Invernal (Sebastian Stan) e o Guardião Vermelho são soldados de elite com força e resistência acima do normal, a Treinadora (Olga Kurylenko) é uma agente com habilidade de combate corpo a corpo sobre-humano… A única diferente do grupo é a Fantasma (Hannah John-Kamen), que consegue alterar sua densidade molecular, atravessando corpos e fazendo pequenos teletransportes. Um grupo desses seria perfeito para enfrentar os vilões do Capitão América, por exemplo, ou do Homem de Ferro. Porém, diferentemente do Esquadrão Suicida, seu primeiro grande vilão é justamente o Superman desse universo: o Sentinela (Lewis Pullman). Ou quase isso.

Nos quadrinhos, o Sentinela é uma criatura extremamente poderosa que ganhou seus poderes depois de roubar e tomar uma tentativa de recriar o Soro do Supersoldado. Só que ele foi vítima de bullying a vida inteira, se tornou viciado em diferentes tipos de drogas e sofria com esquizofrenia. Então, como o soro amplifica o que há dentro da pessoa, ele virou o Sentinela, o “Superman” da Marvel, mas essa “personalidade alternativa” que existia dentro dele, acumulando todo o sofrimento e a amargura que ele enfrentou na vida também ganhou poderes, criando o Vácuo, uma criatura maligna e vingativa capaz de pôr em risco toda a existência. No filme, Bob é um rapaz vítima de abusos e que sofreu com alcoolismo e vício em drogas, enquanto percorreu o mundo buscando algo que desse sentido a sua existência. Foi assim que ele parou em uma sessão de experimentos para criar o “super-herói perfeito”. Com toda sua nova vida trabalhada por um time de marketing, ele foi “arquivado” devido a essa falta de perspectiva e de busca por um sentido na vida. Só que o filme o mostra se libertando e descobrindo que talvez realmente não haja sentido na vida de um deus que não seja mostrar a pessoas inferiores como é seu verdadeiro sofrimento. E para quem sobre resolver esse pepino? Isso mesmo! Ao grupo de trabalhadores cansados e desmotivados pela própria rotina.
Esse embate entre um grupo que claramente não tem a menor condição de enfrentar essa ameaça é muito interessante, porque a vontade de largar tudo e ir embora é grande, mas eles sabem que o trabalho não apenas precisa ser feito, como também entendem que o vilão também é tão explorado pelo patrão quanto eles. O filme é construído de forma que o público não cria antipatia pelo Sentinela porque ele é isso, outro trabalhador frustrado e desiludido, vítima de um sistema que suga a energia e direciona sua existência única e exclusivamente para o trabalho. E talvez seja por isso que esse longa vá falar de forma tão íntima com grande parte do público. Dadas as devidas proporções, é uma trama muito cotidiana inserida nesse contexto de super-heróis.

Mesmo com esse jeitão de reunião sindical, Thunderbolts* ainda é uma aventura Marvel. Então, há dezenas de piadocas, sendo algumas muito bem encaixadas e outras fora do tom. No entanto, em questão de ritmo, o filme dá umas derrapadas. O início é excelente, só que a sequência do cofre é realmente muito extensa, até mesmo arrastada. A partir do momento que eles deixam o tal cofre, a trama engrena novamente, conseguindo trabalhar um pouco mais dessa reunião com toque de terapia de Instagram, mostrando que nesse mundo laboral, não tem como fugir dos empregos, mas que é possível melhorar o ambiente quando todos ganham mais liberdade e o trabalho não toma por completo a vida do indivíduo.
As sequências de ação são bem executadas, mas o que rouba a cena mesmo é a relação entre Yelena e Alexei. A dinâmica de pai e filha, sendo que Alexei ainda enxerga a Yelena como uma garotinha, é incrível e há muita verdade nos trabalhos desses dois atores. A decepção talvez fique pelo Agente Americano. John Walker foi um personagem bastante complexo introduzido na série Falcão e o Soldado Invernal (2021), cuja vida pessoal nunca foi muito explorada. Sua relação com a esposa é até mencionada aqui, seja por comentários ou notícias rápidas em jornais, mas seria legal ver um pouco mais desse Capitão América da Shopee.

De qualquer forma, Thunderbolts* encontra uma certa novidade ao trabalhar como Stan Lee e Jack Kirby trabalhavam há 60 anos, dando mais destaque às pessoas e não aos supers. É um filme bem interessante, com esse probleminha de ritmo, mas com essa abordagem mais diferente.