Como na icônica canção de Cyndi Lauper, Garotas Só Querem se Divertir, o longa indiano Sempre Garotas (Girls Will Be Girls) apresenta Mira (Preeti Panigrahi), uma jovem estudiosa e melhor aluna da turma, buscando um pouco de diversão antes de trilhar seu caminho rumo à vida adulta. Filme de estreia da diretora Shuchi Talati, a obra retrata uma camada social da Índia raramente representada nas produções audiovisuais: a classe média urbana.
Após o sucesso de Tudo que Imaginamos como Luz, de Payal Kapadia, Grande Prêmio do Júri em Cannes, Sempre Garotas ficou em segundo plano na corrida por premiações e distribuição internacional — embora ambos compartilhem a mesma proposta: a perspectiva feminina de empoderamento em uma sociedade ainda dominada pelo patriarcado, além de uma mudança na linguagem dos filmes indianos. Os dois títulos ainda apresentam outro ponto de interseção: a atriz Kani Kusruti, que busca sua liberdade no primeiro e interpreta a mãe da protagonista neste.
Por meio do audiovisual, o Ocidente foi constantemente apresentado aos abismos sociais da nação sul-asiática. Fomos, portanto, condicionados a enxergar famílias opulentas, tradições de dança e grandes festas das camadas abastadas nas produções de Bollywood, em contraste com a pobreza extrema retratada por olhares estrangeiros, como em Quem quer ser um Milionário? (2008), de Danny Boyle, e O Tigre Branco (2021), de Ramin Bahrani.
Com uma proposta diferente, Sempre Garotas constroi um drama social e substancial dentro de um microcosmo que se situa entre a escola e a vida familiar. Ao iniciar a narrativa com o discurso de Mira diante de centenas de jovens bem uniformizados e perfilados, Shuchi Talati nos mergulha em um ambiente de classe média e de jogos de poder. Embora as mulheres ocupem os cargos de professoras e direção, o tratamento às alunas é repleto de pudor e distanciamento em relação aos garotos — qualquer passo em falso pode ser considerado uma desonra.
Aluna de uma escola em regime de internato voltada às classes altas, Mira sonha com uma carreira, demonstra moralidade política e assertividade em suas escolhas. Ela admira sua diretora, a Sra. Bansal (Devika Shahani), mas expressa certo desprezo pela mãe Anila (Kani Kusruti), dona de casa, enquanto idealiza a figura do pai, quase sempre ausente. Criada com o privilégio do acesso à educação e focada em um futuro promissor, a jovem se vê deslocada das demais colegas, mais interessadas em rapazes do que em carreira.
No fim das contas, ao que parece, um bom casamento ainda é mais importante do que uma boa profissão — mas não é assim que Mira pensa, apesar dos sentimentos da juventude começarem a embaralhar sua visão, principalmente com a chegada do charmoso Sri (Kesav Binoy Kiron). Ele é um estudante estrangeiro e, portanto, “diferente dos outros”, conseguindo cortejar Mira e invadir seu mundo particular. Com maestria, Shuchi Talati escreve e dirige uma história crível e poética sobre as descobertas sexuais de uma menina, ao mesmo tempo que aborda a rivalidade materna em sua busca por emancipação como mulher.
A diretora constroi, paulatinamente, uma mise-en-scène de tensãosexual latente entre a jovem e o rapaz, invadindo todos os recantos da mente de Mira e levando o espectador a compartilhar com certo acanhamento esse processo íntimo. Sob o pretexto dos estudos, o rapaz passa a frequentar a casa da protagonista. A partir dessas visitas, nasce também uma relação tensa e insólita entre ele e a mãe da menina — o enredo nunca revela claramente as intenções de cada personagem, o que nos faz questionar cada detalhe e nos prende até o surpreendente diálogo final.
Como uma construção de rivalidade por atenção entre mãe e filha, Sempre Garotas é, ao mesmo tempo, perturbador e envolvente. A narrativa nos coloca em dúvida sobre as ações de todos em cena e de desfechos imprevisíveis. e seus possíveis desfechos. Sempre com delicadeza e sutileza, Shuchi Talati sabe exatamente o que mostrar e o que deixar subentendido, revelando-se uma cineasta promissora já em sua estreia.
Com o final impactante, Sempre Garotas nos convida a refletir sobre a força e a resistência feminina diante de uma sociedade ainda marcada por amarras de honra e papeis de gênero profundamente enraizados. Selecionado no Festival Internacional de Cinema de El Gouna, no Egito, como Melhor Filme pela FIPRESCI — da qual fiz parte do júri —, Sempre Garotas é uma pérola cinematográfica oculta sob o rótulo de “filme estrangeiro”. Com coprodução francesa, ele pode ser comparado a Lady Bird: A Hora de Voar (2017), de Greta Gerwig, como uma bela trajetória de amadurecimento e conflito entre mãe e filha.
Lançado no Festival de Sundance 2024, Sempre Garotas (Girl Will Be Girls) chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, dia 1° de maio, com distribuição de Filmes do Estação.