
‘Black Mirror’ não conquistou o icônico patamar que hoje possui por qualquer motivo: a série antológica criada por Charlie Brooker mergulhou de cabeça em explorações pessimistas do avanço descontrolado da tecnologia em meio a um cenário de puro capitalismo predatório – discorrendo, através de narrativas que discorrem sobre o milenar sistema de castas com “Nosedive”, os perigos da invasão de privacidade em “The Entire History of You” e “Arkangel”, e utilização da mídia como modo de entretenimento de tortura em “White Bear” e “Shut Up and Dance”. Em contrapartida, tivemos episódios que trouxeram uma certa atmosfera de leveza, como “San Junipero” e “Hang the DJ”, denotando uma versatilidade da série.
Apesar de um forte início há quase uma década e meia, a série passou por uma derradeira fadiga criativa que vinha tomando forma desde a quarta temporada, quando incursões nada originais e tomadas por metáforas exauríveis e diálogos cansativos manchavam a estrutura quase imaculada da antologia. Os amadores equívocos permaneceram até a frustrante sexta temporada – a primeira em quatro anos que mais parecia um produto mal-acabado do que algo pertencente a esse outrora incrível universo. Com o anúncio da sétima iteração, não podíamos deixar de ficar com um pé atrás no tocante à qualidade dos capítulos inéditos; felizmente, fomos surpreendidos com uma das melhores entradas da série através de seis sólidos episódios que dão um respiro significativo à atração.
A ideia por trás dessa nova temporada não é apenas voltar a uma forma que já vinha sendo perdida há bastante, e sim encontrar maneiras de trazer assuntos já explorados nas incursões predecessoras sob óticas envolventes e interessantes, mesmo que não inovadoras. “Common People”, capítulo que abre essa nova jornada, nos leva ao complexo mundo da medicina tecnológica em que um casal formado por Amanda (Rashida Jones) e Mike (Chris O’Dowd). Lutando para sobreviver em meio a boletos que não param de chegar e à manutenção de um forte casamento que persevera em meio a altos e baixos, a vida como a conhecem passa por uma brusca mudança quando Amanda entra em coma. Auxiliado pela porta-voz de uma companhia high-tech chamada Gaynor (Tracee Ellis Ross), Mike utiliza suas economias para pagar um tratamento milagroso demais para parecer real – até descobrir as consequências disso.
A verdade é que a indústria responsável pela cirurgia e pelo tratamento que pode tirar Amanda do coma é movida por interesses próprios, vendendo o sonho de voltar à normalidade apenas para se aproveitar de seus clientes – transformando um cotidiano simples e feliz em uma caótica e melancólica realidade. Abrindo espaço para discussões sobre o falso prospecto de cura e de plenitude prometido pelas invenções tecnológicas e pelas companhias que as monopolizam, o episódio pode ter suas falhas, mas emerge como um taciturno e sombrio reflexo de algo não muito distante.
Outros temas são explorados em meio aos episódios: em “Plaything”, quarto episódio da iteração, Peter Capaldi interpreta Cameron Walker, um homem que propositalmente tenta assaltar uma loja de conveniência apenas para ser detido pela polícia a fim de dar início a um plano obscuro que envolve o desenvolvimento de um game chamado Throng. Conectando-se logo de cara com as formas sencientes de vida pertencentes ao jogo, chamadas Thronglets, Cam é instruído com uma missão importante: garantir que esse coletivo de inteligências artificiais espalhe sua mensagem para o mundo em meio à pré-programação humana de egoísmo e individualismo – algo que não os torna vilões, e sim “salvadores” de uma maneira distorcida e controversa.
É notável como Brooker, aliando-se a um time competente de diretores e de roteiristas, rearranja tudo pelo que nos apaixonamos em ‘Black Mirror’ há tantos anos, garantindo que as raízes da antologia sejam recuperadas sem se respaldar por completo em uma nostalgia repetitiva e redundante. “Hotel Reverie”, cujo título em si já nos dá uma dica do que esperar (considerando que reverie traduz-se para devaneio), e “Eulogy” partem de uma premissa menos pessimista e mais dramática e intimista, em que os protagonistas são forçados e lidar com reviravoltas inesperadas. Este, estrelado pela força incomparável de Paul Giamatti, é um poderoso estudo antropológico sobre arrependimentos amorosos e enfrentamento de fantasmas adormecidos; aquele, por sua vez, traz referências ao aclamado episódio “San Junipero”, apoiando-se no talento de Issa Rae, Emma Corrin e Awkwafina para um enredo firmado na metalinguagem anacrônica que não tem medo de se arriscar. Não é surpresa que a ousadia de ambos os transformem nos melhores capítulos do sétimo ciclo.
Completando a leva inédita de iterações, “Bête Noire” é respaldado pelas performances magníficas de Siena Kelly e Rosy McEwen em uma clássica história de bullying e vingança que envolve uma gênia da tecnologia e uma mestra da culinária – e, enquanto o terceiro ato do episódio pode soar um tanto quanto ocasional e exagerado, a conclusão faz sentido dentro de uma angustiante ambientação que une tecnologia, histeria e gaslighting em um único cosmos. E, para além das ótimas atuações e de uma forte direção – cortesia de Toby Haynes -, somos engolfados pela premissa por sua saudosa menção aos primórdios da série.
Concluindo essa espetacular temporada (que, obviamente, não é livre de falhas), temos a tão aguardada sequência de “USS Callister”. O episódio da quarta temporada ganhou uma forte continuação intitulada “USS Callister: Into Infinity”, expandindo a mitologia imortalizada em 2017 através de twists poderosos e um time incrível de atores liderado por Cristin Milioti e Jimmi Simpson em investidas aplaudíveis. Mantendo-se fiel à apaixonante estética sci-fi de ‘Star Trek’, o episódio estende-se por uma hora e meia de duração que passa em um piscar de olhos, valendo-se de uma mistura entre o mundo real e virtual à medida que constrói críticas bem-vindas ao uso de clones humanos traduzidos em códigos de inteligência artificial – que, com mais força do que nunca, merecem espaço de discussão.
A 7ª temporada de ‘Black Mirror’ é um glorioso e reconfortante retorno à forma depois de alguns anos cedendo a fórmulas e a clichês errôneos que não traziam nada de interessante. Com os inéditos episódios, Brooker prova que ainda tem muito a contar para os fãs inveterados da antologia – e que, quando bem arquitetados, conseguem nos encantar da mesma maneira que antes.