Sem uma nova divisão independente, a Apple dificilmente alcançará o resto do mercado de IA

Apple Intelligence em um iPhone

Quando o ChatGPT foi lançado, em 30 de novembro de 2022, nem mesmo a OpenAI sabia que estava prestes a não apenas abrir, mas sim explodir as portas da era da inteligência artificial generativa.

Para começar, o projeto era tão experimental e despretensioso que o conselho da OpenAI sequer foi avisado de que o chatbot seria lançado. Segundo a ex-conselheira Helen Toner, ela e seus colegas ficaram sabendo da disponibilização por meio da repercussão do lançamento no Twitter 1. Já a própria equipe envolvida no desenvolvimento do ChatGPT admitiu, em mais de uma oportunidade, que foi pega totalmente de surpresa com o sucesso imediato da ferramenta, e que não esperava que ela fosse ganhar tanta importância tão rapidamente.

“Eu achei que [o ChatGPT] seria intuitivo para as pessoas e esperava que fosse conquistar um público, mas eu não pensei que ele alcançaria esse nível de popularidade tão ampla”, disse John Schulman (cofundador da OpenAI e recém-contratado pela rival Anthropic) à publicação MIT Technology Review em março de 2023. Já Christina Kim (pesquisadora de aprendizado por reforço na OpenAI) disse, em uma entrevista recente ao The Verge, que “os painéis [internos de diagnóstico da ferramenta] viviam totalmente vermelhos” após o lançamento.

De lá para cá, todo o mercado de tecnologia tem se reconfigurado — em maior ou em menor grau — em torno da adoção de funcionalidades de IA generativa em seus produtos.

A Meta, sob o comando de Yann LeCun (um dos papas do aprendizado de máquina há quase 40 anos) na divisão de IA que ela tem desde 2013, está nadando de braçada no segmento de modelos de código aberto com o Llama. Isso, por sua vez, tem atraído cada vez mais a atenção do mundo para esse tipo de modelo, o que tem se traduzido em excelentes descobertas e evoluções nos segmentos de saúde e educação sem a dependência de modelos fechados, como é o caso do ChatGPT, do Claude, etc.

Meta detalha os modelos Llama 3.1, em julho de 2024, bem mais capazes do que os modelos da Apple Intelligence anunciados no mês anterior.

Já a Microsoft aumentou significativamente seu investimento multibilionário na OpenAI, mas também criou a divisão Microsoft AI, que conta com um CEO 2 próprio (Mustafa Suleyman, cofundador da Google DeepMind), e vem correndo para reduzir sua dependência da empresa de Altman. Eu explorei esse assunto com mais profundidade nesse artigo e, de lá para cá, essa complicação da relação entre as duas companhias só ficou cada vez mais evidente.

Aliás, no evento (presencial) Microsoft Ignite 2024, no final do mês passado, a OpenAI só foi citada no contexto de ser cliente do Azure 3, em uma tentativa de posicionar a Microsoft como uma potência no fornecimento de infraestrutura para IA, ao invés de apenas uma parceira dependente da dona do ChatGPT.

Keynote da Microsoft Ignite 2024 em novembro de 2024, incluindo funcionalidades do Copilot muito mais avançadas do que as capacidades da Apple Intelligence anunciadas em junho de 2024.

Enquanto isso, a Amazon tem trilhado um caminho bem parecido na sua relação com a Anthropic. Em setembro de 2023, ela investiu US$4 bilhões na dona do chatbot Claude e, no mês passado, anunciou que investirá outros US$4 bilhões, sob a condição de reforçar o papel que a AWS (Amazon Web Services) e o Amazon Bedrock (serviço que oferece acesso a modelos fundacionais de IA generativa) desempenham na infraestrutura da Anthropic. Dias depois, no evento (presencial) AWS re:Invent, do início de dezembro, ela anunciou a Nova, sua própria família de modelos fundacionais de IA generativa multimodal sem nenhuma relação com a Anthropic. Notou um padrão?

Segmento do evento dedicado aos modelos Nova, com capacidades e desempenho muito mais avançados do que a Apple Intelligence.

Já a Apple… bem… a essa altura, não faltam entrevistas, declarações ou vazamentos que dão conta de que, além de ter sido pega de surpresa com as possibilidades e o sucesso da IA generativa, a empresa demorou demais para reagir e parece estar cada vez mais longe de entregar as promessas feitas na WWDC24 a tempo da WWDC25.

Isso, por sua vez, parece já estar resultando no atraso de funcionalidades (sejam elas ligadas a IA ou não) que estavam planejadas para o ano que vem, sendo algumas delas previstas agora para chegarem apenas em 2026.

Aqui está Mark Gurman, em um post recente detalhando mais o problema:

Ver no Threads

Eu continuo ouvindo que o lançamento gradual de recursos do iOS 18 até o iOS 18.4 está causando atrasos em algumas funcionalidades programadas para o iOS 19. Isso resultará em um lançamento prolongado de recursos no próximo ciclo também. Os engenheiros estão presos trabalhando em projetos do iOS 18 quando normalmente já estariam envolvidos no desenvolvimento do sistema operacional seguinte.

Eu não sei quanto a você mas, para mim, a chave da declaração de Gurman está no segmento final: “Os engenheiros estão presos trabalhando em projetos do iOS 18 quando normalmente já estariam envolvidos no desenvolvimento do sistema operacional seguinte.”

Isso me fez lembrar de como a estrutura da Apple é diferente da de todo o resto do mercado, o que por muitas décadas foi uma das chaves do sucesso da companhia frente à concorrência.

Ocorre o seguinte: antes do retorno de Steve Jobs, em 1997, a estrutura interna da Apple era organizada em diferentes unidades de negócio. Havia a divisão do Power Macintosh, a do Performa, a do PowerBook, a do Newton, a de câmeras digitais (responsável, por exemplo, pela linha QuickTake), a do Mac OS, a do Copland, etc. Cada divisão tinha suas próprias unidades de marketing, vendas e engenharia, mas todas brigavam pelos mesmos recursos (limitadíssimos) de uma Apple que estava à beira da falência.

Quando Jobs voltou, ele mudou radicalmente essa organização. Ele deu cabo das unidades separadas de negócio e reestruturou a Apple de modo que haveria, por exemplo, apenas um responsável por todos os hardwares de todas as linhas de produtos da companhia, apenas um responsável por todo o software, apenas um responsável pelo design, apenas um responsável pelas operações, e assim por diante. Com esse modo mais enxuto de operar, acabou a burocracia interna e a disputa por recursos, porque agora todos passariam a ser dedicados de forma compartilhada a todos os projetos.

Isso, obviamente, deu bastante certo, e foi um dos fatores determinantes para permitir o desenvolvimento do iMac, do iPod, do iPhone, e assim por diante. O problema é que a Apple seguiu crescendo, mas nunca abandonou totalmente essa estrutura. E é essa herança de uma Apple mais enxuta que parece estar impedindo-a de seguir o próprio ritmo cada vez mais acelerado de desenvolvimento 4, à medida em que também precisa se adaptar à evolução do mercado para direções que ela não controla ou — no caso da IA — falhou em se antecipar.

E aqui vai um agravante: exatamente como eu detalhei nesse texto que eu temia, as funcionalidades que a Apple anunciou na WWDC24 foram apenas o mínimo do mínimo do mínimo da obrigação que ela tinha de anunciar, frente à oferta de produtos de IA generativa que o resto do mercado já oferecia pelo menos desde o início do ano.

Na última semana, o Google começou a liberar o projeto Astra para alguns telefones, com a capacidade de interagir por voz, em tempo real com o modelo, com base no que está ao vivo câmera do celular. Por comparação, a (ainda atrasada) funcionalidade Visual Intelligence já parece pré-histórica.

E enquanto ela vem tropeçando na própria sombra para entregar esse mínimo do mínimo do mínimo de uma forma bastante gradual e cada vez mais atrasada, o resto do mercado já parece estar, novamente, muito além do que qualquer coisa que a Apple pareça ter condições de entregar em um futuro próximo ou até mesmo relativamente distante. Dentro de um cenário em que a Apple não perca completamente o bonde, ainda estamos vivendo a pior alternativa.

OpenAI anuncia a disponibilização da funcionalidade que permitirá compartilhar a tela do iPhone com o ChatGPT.

É injusto tentar comparar as funcionalidades da Siri e da Apple Intelligence com os produtos, digamos, da OpenAI, cujo único trabalho é justamente e exclusivamente desenvolver e evoluir os próprios modelos de IA com um orçamento praticamente infinito? Sim.

Mas talvez seja exatamente esse o problema, que por sinal sequer é algo novo. Quantas vezes, nos últimos anos, vimos notícias de que a Apple estava adiando o desenvolvimento do macOS para concentrar seus esforços no desenvolvimento (ou correções de bugs) do iOS, ou vice-versa? Quantas vezes a vimos adiar funcionalidades ou versões inteiras de um update, depois de perder o prazo interno de desenvolvimento? Quando uma empresa com mais de 160.000 funcionários 5 começa a não ter braços suficientes para dar conta do recado, é porque algo de errado não está certo.

Enquanto a Apple mantiver a estrutura atual, herdada há quase três décadas em um momento de emergência no qual que ela teve de reduzir a sua operação (que ainda assim era infinitamente menor do que hoje em dia), não parece haver esperança de que ela consiga reduzir a distância entre o que ela tenta lançar, em comparação ao que temos visto da concorrência no segmento de IA.

Assista a qualquer evento ou anúncio recente das outras gigantes da tecnologia, e compare com as funcionalidades que chegaram apenas na última semana aos sistemas da Apple. Ou com as que seguem sendo adiadas e sequer têm uma previsão precisa de lançamento. É patético.

Google anuncia que o Gemini Live passará funcionar na web, podendo ter acesso à câmera do computador ou ao que está na tela, para oferecer assistência em tempo real.

Quanto mais eu penso sobre a situação da Apple no segmento de IA, mais fica óbvio que ela precisa fazer exatamente o que a Microsoft fez: criar uma divisão autônoma e que lide exclusivamente com IA 6, sob a liderança de alguém de peso e de tradição nesse mundo 7, e com o sangue nos olhos que John Giannandrea — que chegou à Apple em 2018 e dorme no volante até hoje — já provou abundantemente que não tem.

Uma divisão independente de IA traria novos problemas e desafios de integração das tecnologias ao roadmap do desenvolvimento de software e de hardware da Apple? Sem dúvidas. Esses são problemas que a OpenAI e a Microsoft não enfrentam. Mas se uma coisa já está dolorosamente óbvia, é que a estrutura atual da Apple também não está funcionando para IA. Não apenas isso, mas parece estar piorando o problema, enquanto a concorrência parece apenas acelerar.

Notas de rodapé

1    Esse, segundo ela, foi um dos exemplos de decisões que levaram o conselho a tentar demitir Sam Altman do cargo de diretor executivo em novembro de 2023.
2    Chief executive officer, ou diretor executivo.
3    Serviço de infraestrutura de computação na nuvem da Microsoft.
4    E da volta da expansão da linha de produtos, de mercados e segmentos nos quais a Apple opera.
5    Obviamente apenas uma parcela disso são engenheiros, sendo grande parte equipes de varejo.
6    E que vá além dos interessantíssimos estudos que a Apple publica sobre isso.
7    Alguém com muito mais autonomia para contratar, demitir ou definir rumos e metas do que a Apple está acostumada a dar a apenas uma pessoa.
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