

Para Lúcio Rodrigues, de 60 anos, artista tem que ter calo na mão. Isso significa não só colocar a mão na massa, mas colocar de novo e mais uma vez, repetir esse movimento continuamente, experimentar tudo que é possível. É por isso que ele tem um currículo bem diverso: foi um dos primeiros tatuadores de Juiz de Fora, trabalhou desde os 13 anos com serigrafia, fez ilustrações de livros, pintou vários pontos de ônibus de Juiz de Fora e fez dezenas de exposições de artes plásticas. É tanto quadro que na casa dele já deixou de caber há bastante tempo. Conhecido por “tio Lúcio” na Praça Céu, onde dá aula, ele ensina para os alunos muito do que teve que aprender sozinho, desbravando os caminhos que seguiu, desde que viu um desenho em quadrinho pela primeira vez e quis entender de arte. Cheio de piercings e alargador, ele não esconde o que pensa e o que busca: o mundo precisa de artista e de muito mais arte.
Ele nem gosta de falar muito há quanto tempo faz arte, nem há quanto tempo dá aula. Porque isso, para ele, são conceitos difíceis de pensar e determinar — arte é uma forma de sobreviver, enquanto “dar” aula não expressa bem o que faz, mais uma troca de experiências e perspectivas. Toda essa ligação começou quando ele ainda era muito pequeno, bem antes de imaginar que isso seria uma profissão. “Eu tenho um jeito diferente de pensar. Naquela época, não ficava preocupado com o que ia ser, eu era criança e ponto.” Mas o que o “salvou”, como define, foi a literatura, viajando por meio dos livros de Júlio Verne e Herman Melville. “Tento passar essa paixão que a arte representa para mim. Eu podia ter sido qualquer coisa, bombeiro, capitão de cabotagem, mas não queria.”
Ele conseguiu transformar a sala onde se encontra com alunos em um verdadeiro ateliê, cheio de artes, e não fica nem 15 minutos sem chegar alguém para cumprimentar, justificar faltas ou só para papear. “Eu acho que tento dar atalhos para meus alunos. Na minha época, eu não tive escola e nem professor para me dar esses atalhos. Quando vi uma xilogravura, tive que procurar no dicionário o que era. Mas agora posso mostrar para eles e ensinar como faz.” Por esse jeito prático, ele conta que também já testou de tudo: desde a pele, para tatuagem, até formas de escultura em bronze. Muito ligado à cultura, ele se descobriu punk quando o movimento ainda era novidade em Juiz de Fora, a partir de um pedaço de uma matéria no jornal, e participou ativamente dessa construção na cidade. “Esse quadro aqui, perto de mim, pintei uma Guernica, mas colocando os povos yanomami como essas vítimas da guerra.”
A preocupação com ter uma identidade própria nunca foi seu foco. “A Sandra Sá, minha amiga, fala que eu sou um artista compulsivo. Acho que sou, mesmo.” Também por isso, como professor, acredita que se deve tentar de tudo um pouco, e que artista não se aposenta, ao contrário de médico ou advogado. “Uma pessoa pode fazer aquarela, por exemplo, para vida toda. Então faz sentido na vida de todo mundo. Acho que se o médico fosse artista, ele seria um médico muito melhor (…) Arte é uma coisa que faziam desde as cavernas.” Não é por acaso o exemplo desse tipo de pintura: é o que sua filha, de 13 anos, faz em casa, com uma técnica que ele acha muito melhor que a sua. “Na pandemia, eu, ela e minha mulher ficamos desenhando juntos. A gente não tinha vontade de ir lá fora, porque estavamos criando um mundo ali dentro.”

Coletivo Arte ZN
O coletivo Arte ZN, do qual ele faz parte, começou a partir de uma necessidade sua, quando descobriu um câncer na bexiga. Ele tinha sido aprovado na Lei de Incentivo à Cultura Murilo Mendes e ia fazer as pinturas no ponto de ônibus da cidade, quando recebeu a notícia. E mesmo já durante o tratamento, começou a sentir um desânimo de fazer aquilo. Foi então que Danielly e Roseane, também artistas, sugeriram que se juntassem a outros artistas da Zona Norte e, juntos, fossem pintar. “Foi difícil, teve um dia que eu cheguei brigando com todo mundo, queria que fizessem ‘Os operários’, da Tarsila do Amaral, do meu jeito. Em casa, minha mulher brigou comigo, puxou minha orelha e falou que eu não podia ser desse jeito, porque eles estavam me ajudando.” Para ele, foi uma virada de chave: quando voltaram, entendeu que era melhor cada um fazer uma pessoa do seu próprio jeito. E gostou bem mais do resultado.

O contato mais próximo com outros artistas, na Zona Norte, foi algo que mudou muito com o tempo, e ele espera ter podido contribuir para isso. “Eu presenciei essas histórias meio na penumbra, porque eu era só um moleque, um moleque da Zona Norte.” Também por isso, acredita que o coletivo já é algo que extrapolou em muito o que imaginava que poderia ser. “Não é mais sobre mim. Quando surge uma oportunidade, eu quero todo mundo junto. (…) Para mim, o que era importante não era dinheiro, fama, protagonismo, lacração. Às vezes eu nem fotografo, às vezes eu nem assino. Minha questão é o realizar, é ter conseguido viver disso a vida toda.” Para ele, o que tem que ser reconhecido como mais importante é a obra, e ponto final. “Ah, e eu tive um infarto também. Bem aqui, nessa sala que estamos conversando”, conta, como quem lembra de algo casual. Mas explica: “O câncer criou em mim um medo que eu não tinha. (…) Então agora eu eu tenho essa pendenga, mas ao mesmo tempo eu tenho esse trabalho, que é o que me mantém resistindo.”
Com toda a licença poética
Quando Lúcio começa a dar aula, na Praça Céu, neste mesmo lugar que começou a trabalhar quando teve o câncer, se propõe a ideias bem diferentes. Conta que já começou a aula com “Vamos desenhar o peso do tempo” ou “Quero que façam algo que é verdade e mentira ao mesmo tempo”. Para quem dá aula para pessoas a partir dos 6 anos, mas também tem aluno de 78, é preciso saber jogar com a liberdade. É isso que, para ele, importa realmente no fazer artístico, muito mais do que pedir para os alunos desenharem natureza morta. “Gosto de partir do que eles trazem, do mote deles.”
Com os mais novos, percebe que um excesso de literalidade pode atrapalhar o processo criativo. Também por isso toma a licença poética para incentivar que criem fora do que estão vendo. “Outro dia, uma aluna falou que não sabia desenhar, e falei pra ela fazer um triângulo, um círculo e um quadrado. E aí falei: com isso você desenha qualquer coisa. E ela perguntou como, e fui mostrando. Disse: ‘Estou te ensinando a ver, não a desenhar. Porque sem enxergar não tem arte.” Para ele, essa também é uma forma de humanizar os alunos, tratando-os com uma liberdade que, provavelmente, não vão encontrar na vida e em casa – além de uma maneira de também ajudá-los a ir criando os próprios repertórios. “Trato todo mundo igual, espero que eles exerçam essa liberdade aqui.”
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