Bilhões em jogo e decisões que não saem: arbitragem no Brasil enfrenta crise de confiança

A J&F Investimentos precisou de quase oito anos para encerrar a disputa pelo controle da Eldorado Brasil Celulose com a multinacional Paper Excellence. O acordo, fechado nesta quinta-feira, 15 de maio, envolveu o pagamento de R$ 15 bilhões à vista e o fim de todos os processos judiciais e arbitrais no Brasil e no exterior, conforme comunicado divulgado pela empresa. O tempo que levou para se chegar a esse desfecho — e os episódios ocorridos ao longo do processo — ajudaram a acender o alerta sobre os limites da arbitragem no país.

Durante o litígio, a J&F chegou a contestar uma sentença parcial favorável à Paper, alegando espionagem de e-mails e conflito de interesse por parte de um dos árbitros, o que foi confirmado pela polícia. A decisão foi anulada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, e o caso chegou a envolver o Ministério Público Federal, que apontou possíveis ilegalidades na tentativa de transferir o controle da empresa a uma companhia estrangeira sem aval do Congresso, contrariando a Lei de Terras.

Um dos fatores que pesou contra a Paper Excellence no desfecho foi uma decisão de 2022 do Tribunal de Justiça de São Paulo negando pedido de anulação da arbitragem pela J&F, com base em denúncias de ilegalidade. Em março de 2025, o TJSP revogou a decisão anterior e deu ganho de causa à J&F, culminando no acordo fechado ontem apenas três meses depois.

Para a analistas, o histórico desse episódio acendeu o debate sobre a própria legalidade do modelo de arbitragem e sua necessidade de aprimoramento. Processos extrajudiciais que deveriam ser rápidos e eficazes, acaba se tornando morosos, opacos e sujeitos a falhas graves.

Casos como esse colocam em xeque a confiança de investidores no sistema arbitral brasileiro, hoje alvo de críticas por atrasos, falta de transparência e insegurança jurídica. O debate ganhou novo fôlego com a retomada do Projeto de Lei nº 3293/2021, que propõe mudanças na Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/1996). Apresentado pela ex-deputada Margarete Coelho (PP-PI) e parado desde 2021, o texto voltou a tramitar em abril, quando foi redistribuído ao deputado Diego Garcia (Republicanos-PR) e passou a ser analisado por uma consultoria técnica da Câmara.

O projeto sugere medidas para aumentar o controle sobre a atuação dos árbitros, como a exigência de que eles informem potenciais conflitos de interesse — sejam de ordem pessoal, profissional ou financeira — e a divulgação de dados ao fim dos processos. Também prevê que ações judiciais para anular sentenças arbitrais deixem de correr em sigilo. A ideia é tornar os procedimentos mais transparentes e alinhados a boas práticas internacionais.

A proposta, no entanto, dividiu opiniões. “Tem pontos positivos, como impedir que dirigentes de câmaras arbitrais atuem como árbitros ou advogados em processos da própria instituição”, afirma Brahim Bitar, sócio do Fonseca Brasil Advogados. “Mas o texto também traz medidas que podem desorganizar o sistema, como limitar a atuação simultânea de um árbitro a dez casos ou proibir que tribunais arbitrais se repitam com os mesmos nomes.” Para ele, isso interfere na liberdade das partes em escolher profissionais experientes, especialmente em áreas altamente técnicas.

Flávio Yarshell, do Yarshell Advogados, vê mais riscos que benefícios. “A proposta enfraquece a arbitragem ao mexer em pilares como a autonomia das partes. Em vez de resolver problemas, pode gerar ainda mais insegurança”, diz.

O caso Golden Laghetto

Enquanto isso, investidores enfrentam na prática os efeitos de processos que se arrastam por anos. Um exemplo recente é a disputa entre a Fortesec e os controladores do resort Golden Laghetto, na Serra Gaúcha. Em 2021, a Fortesec estruturou uma operação de R$ 150 milhões com Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs) para financiar o empreendimento. Os pagamentos aos investidores seriam garantidos pelos recebíveis da venda das unidades, centralizados em uma conta vinculada.

Mas o plano foi frustrado. Com o aumento das dívidas do resort, os sócios majoritários trocaram a empresa responsável pelas vendas por uma nova, de mesmo controle, sem consultar os credores. Segundo investidores que falaram em condição de anonimato, mais de R$ 50 milhões deixaram de ser repassados corretamente. Somas vultosas foram desviadas, com depósitos comprovados na conta de terceiros, em prejuízo dos cotistas e investidores. Desde então, os pagamentos dos CRIs estão em atraso e a arbitragem acionada para resolver o caso já dura mais de dois anos sem solução.

“A gente entrou na arbitragem esperando um desfecho rápido. Já são dois anos de silêncio e prejuízo crescente”, diz um investidor, que pediu anonimato. “Esses títulos foram vendidos como de baixo risco, mas estamos arcando com perdas que não estavam no radar de ninguém.”

O caso expõe o que muitos consideram uma falha estrutural da arbitragem no Brasil: o tempo. Embora o mecanismo seja visto como mais ágil que o Judiciário — onde litígios empresariais podem levar mais de uma década —, a realidade nem sempre confirma essa vantagem.

“É comum que uma arbitragem leve de 18 a 19 meses. Em disputas mais complexas, esse prazo pode ultrapassar três anos”, explica Ricardo Ranzolin, sócio do Silveiro Advogados. “Já tive caso que demorou um ano e meio só para formar o tribunal arbitral, por causa de conflitos e número de partes envolvidas.”

Na Câmara de Arbitragem do Mercado (CAM), por exemplo, o tempo médio dos processos chegou a 35,4 meses em 2023, segundo levantamento do setor. Só a partir da assinatura do termo de arbitragem, o prazo médio é de 26,7 meses. A demora pode ser acentuada por estratégias de litigância, como pedidos sucessivos de provas ou impugnações a árbitros, que atrasam ainda mais o andamento.

Na avaliação de Ranzolin, apesar das falhas, a arbitragem ainda é mais eficaz que a Justiça tradicional. “Casos com milhares de páginas e alto grau de complexidade poderiam levar 15 ou 20 anos no Judiciário.”

Mas para quem investe, o relógio corre contra. “O processo virou uma caixa-preta. Ninguém sabe quem decide, nem quando vai acabar. Só sentimos o impacto no bolso”, resume outro credor do caso Golden Laghetto.

Até o fechamento desta reportagem, Fortesec e Golden Laghetto não responderam aos pedidos de entrevista.

Enquanto o Projeto de Lei 3293/2021 tenta dar resposta a parte desses problemas, as soluções propostas ainda dividem especialistas — e o tempo continua sendo um dos principais inimigos de quem confia na arbitragem para resolver conflitos empresariais.

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