Crítica | ‘Homem com H’ faz jus à arte e ao legado irreverente de Ney Matogrosso

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Ney Matogrosso é um dos artistas mais conhecidos e prestigiados da história nacional – e ficou conhecido por, em uma época de extremo tradicionalismo, quebrar padrões de gênero através de uma voz única e de um estilo performático irreverente e disruptivo, que chamou a atenção da mídia e dos espectadores (para o bem ou para o mal). Eternizando-se como um dos maiores performers do Brasil e estendendo seu legado para diversas gerações, Ney continua como uma força incomparável e irrefreável – ganhando, agora, uma merecida cinebiografia intitulada ‘Homem com H’, que chega aos cinemas no próximo dia 1º de maio.

Comandado por Esmir Filho, o filme narra a ascensão e a popularização de Ney como o artista que o conhecemos – delineando o claro impacto que a vivência com um pai militar rígido e impetuoso o transformou em um ícone do entretenimento. Aqui, Jesuíta Barbosa, conhecido por seu trabalho em produções como ‘Tatuagem’ e ‘Serra Pelada’, transforma-se no protagonista de maneira irreconhecível e singra pelos altos e baixos de alguém que se recusava ao conformismo e sempre prezou pelo inédito e pelo original. Não é surpresa que, ao assistir à produção, os espectadores sejam engolfados por um trabalho aplaudível do ator, que busca emular e homenagear Matogrosso nos mínimos detalhes – seja nos maneirismos corporais ou no petrificante olhar que conquistou o país inteiro.

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Filho, responsável também pelo roteiro, pega páginas emprestadas de inúmeras obras similares para dar vida a esse enredo: promovendo um encontro entre vários momentos importantes de Ney, somos convidados a visitar uma infância conturbada em que ele nunca pôde, de fato, ser uma criança – forçado a obedecer cegamente a uma família doutrinada por uma época em que “a moral e os bons costumes” deveriam ser seguidos ao pé da letra, mas recusando-se a dobrar às vontades do pai, Antônio (Rômulo Braga). Ao ser expulso de casa por não seguir as regras, Ney entra para a Aeronáutica, muda-se para Brasília e ganha destaque ao participar do coral local, migra para São Paulo e depois para o Rio de Janeiro e, pouco a pouco, transforma esse estilo “nômade” em seu próprio cotidiano – algo que é criticado por terceiros, mas apenas o enche de mais determinação.

Ao longo de duas horas, é notável como o cineasta conhece a história de Ney e tem plena ciência do que deseja fazer: seja em seu trabalho como figurinista e artesão, seja rodeado por artistas amadores, seja em sua estreia oficial como músico na banda Secos & Molhados, Filho deixa que Barbosa expresse sua própria identidade artística e encarne a mente em polvorosa de Matogrosso – descontente ao se ver transformado, dia após dia, em um produto mercadológica que poda suas asas e que o coloca em rótulos que abominava desde sempre. Imortalizado por seu estilo andrógeno, Ney seguiu o que a mente e o coração mandavam, nunca deixando de se preocupar com aqueles que amava – como, por exemplo, o saudoso Cazuza (encarnado por Jullio Reis), e a mãe, Beíta (Hermila Guedes).

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Um dos elementos de maior defesa do longa-metragem é a forma como o performer se posicionava contra qualquer regime autoritário. E, considerando que seu auge artístico emergiu em meio à Ditadura Militar que assombrou o Brasil durante mais de duas décadas, as maquiagens, as roupas e seu estilo de dança eram (e continuam sendo) poderosos estandartes contra a opressão e a repressão, recusando-se a derramar uma lágrima mesmo quando os obstáculos apareciam. Mais do que isso, Filho nos leva à obscura época em que a epidemia de HIV ceifava as vidas da comunidade LGTBQIA+, deixando de lado os aspectos panfletários e garantindo um enfoque exclusivo em como Ney e todos à sua volta lidavam com esse mortal problema. “Eles querem colocar a culpa em nós, mas a culpa não é nossa”, ele brada no ápice do terceiro ato.

É claro que a estrutura técnica segue o protocolo de cinebiografias; porém, o diretor garante que uma ideia específica seja transmitida ao público de maneira derradeira e com a mais absoluta certeza de que o intimismo e a humanidade fornecidas a esse artista nos emocionem do começo ao fim – além de dosar esse drama familiar e tour-de-force com uma boa dose de humor. Dessa forma, a fotografia de Azul Serra e a direção de arte de Thales Junqueira caminham juntas para garantir uma introspecção fílmica que preza por cores melancólicas e planos fechados, afastando-se do escopo épico de espetáculos e shows e transformando cada performance em um arauto de desobediência proposital e de liberdade conquistada por Ney.

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‘Homem com H’ é uma grata surpresa que faz jus ao legado e à arte de um dos maiores artistas da história do nosso país – contando com atuações irretocáveis e um comprometimento estético e criativo que deixa nossos olhos mareados mesmo depois dos créditos de encerramento subirem à tela. Problemas mínimos à parte, é possível dizer, sem pensar duas vezes, que o filme é um dos melhores do circuito nacional este ano e merece ser apreciado em toda sua completude.

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