Crítica | ‘Serra das Almas’ é um grande amontoado de vários nadas em meio a um propósito inexistente

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‘Serra das Almas’ se mostrava como um interessante projeto com uma forte ambição de apostar fichas em um suspense dramático político. Dirigido por Lírio Ferreira, o filme é centrado em um sequestro e um roubo de joias que nos leva para a suntuosa reserva natural no Sertão dos Inhamuns, no Nordeste do Brasil, em que amigos de longa data se reencontram em meio a tensões e a ressentimentos não resolvidos que culmina em um banho de sangue e em tragédia pura. E, como ponto de partida, todos ali estão envolvidos com um conchavo entre um corrupto Senador e um grupo mafioso que minera pedras preciosas ilegais – e que coloca um time de jornalistas investigativos em perigo mortal ao serem feitos de reféns.

Apresentando-se com um potencial incrível, o projeto comandado por Ferreira tinha todos os elementos necessários para cativar o público, além de trazer às telonas uma história que, há tempos, não víamos no cenário audiovisual nacional. Porém, remando contra as nossas expectativas, o resultado do filme é muito aquém do esperado e transforma-se em um grande amontoado de tramas e subtramas esquecíveis, personagens mal construídos e uma exaltação derradeira do mais puro nada – mostrando que o propósito de sua sinopse não é cumprido em qualquer momento.

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Nenhum aspecto do filme funciona como deveria, com uma raríssima exceção destinada à performance de Ravel Andrade como Gislano, braço-direito do senador em questão, que traz o mínimo de humanidade em uma atuação que destoa da completa monotonia artística de seus colegas de trabalho – e que os carrega do começo ao fim com uma força descomunal. Julia Stockler e Pally Siqueira, dando vida à dupla de jornalistas que é sequestrada e levada para a Serra das Almas, são enclausuradas em cápsulas formulaicas de protagonistas novelescas, cujas centelhas de complexidade se esvaem em meio a diálogos e a interpretações risíveis; David Santos, que dá vida ao ladrão Charles, é engolido quando em cena ao lado de Andrade; e Vertin Moura, um desconhecido que acidentalmente se viu arrastado para essa artimanha, rende-se a uma das piores atuações do ano (ao menos até agora).

Ferreira parece indiferente à maneira que vai conduzir a obra, e soa como se estivesse copiando o ótimo drama interpessoal ‘Os Sapos’, lançado no começo de 2025: a paisagem campestre é remodelada em arbitrárias sequências panfletárias que não dizem nada além do óbvio, urgindo como fillers cansativos e que apenas tapam buracos de um roteiro recheado de metáforas ridículas e vencidas; a condução dos planos e os enquadramentos é prosaica demais para ser levada a sério, como se o filme fosse um mero projeto de estudantes em seu primeiro ano na faculdade de cinema; e a suposta simbologia que desponta aqui e ali é tão falha que chega a causar risos inesperados em momentos inoportunos – denotando uma falta de preparo clara da tonalidade das sequências e das reviravoltas (se é que podemos encontrar alguma).

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Até mesmo elementos que poderiam suprir a carência artística e criativa da obra não cumprem seu simples papel. A trilha sonora é pautada na dissonância das cordas e das buzinas, porém, não há qualquer momento em que a música faça sentido dentro do que é-nos apresentado; a paleta de cores é banal, rendendo-se ao minimalismo exacerbado do uso de cores que tenta se aproximar com a dura realidade política e social que serve de base para o enredo, mas ecoa como uma falha de pós-produção; a montagem, que busca uma abordagem anacrônica que viaja para o passado e para o presente com cortes bruscos e recursos de passagem de tempo exauríveis, não tem qualquer sentido dentro da estrutura.

Por fim, as duas horas de duração do projeto se espalham profusamente em cansativas repetições, que nos fazem se mexer na cadeira esperando pelos créditos de encerramento subirem à tela – e que nos levam a perguntar quantas vezes uma história pode acabar. Em virtude dos incontáveis equívocos técnicos que estendem esses minutos em uma incompleta e insossa narrativa, a subtrama que explora a “origem” dos personagens é descartável e delineada com pressa frenética que torna o ritmo ainda mais desequilibrado e perturbador.

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A máxima “de boas intenções, o Inferno está cheio” talvez nunca tenha sido tão bem aplicada quanto ao frustrante corolário de ‘Serra das Almas’. Conforme saímos da sala de cinema, percebemos que o magnífico potencial do longa foi varrido para debaixo do tapete, nos deixando com uma espécie de versão encruada e estagnada do que, de fato, deveria ter chegado aos cinemas – um amontoado de vazios cênicos cujo propósito é, com a falta de outro termo para empregar, inexistente.

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