Mickey 17 | Neocolonialismo e exploração: os temas do novo filme de Bong Joon-ho

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Bong Joon-ho sempre foi um diretor único.

Desde sua estreia oficial no cenário de entretenimento sul-coreano lá em 2003, o realizador incrementou narrativas aparentemente clichês com debates sutis e ácidas críticas à própria sociedade – tendo alcançado esse feito em uma variedade considerável de gêneros, incluindo o terror ‘O Hospedeiro’, o thriller neo-noir ‘Memórias de um Assassino’ e a dramédia de suspense ‘Parasita’ (este tendo rompido barreiras ao redor do mundo e garantido ao cineasta nada menos que três estatuetas do Oscar, fazendo história ao receber o prêmio de Melhor Filme). Agora, somos convidados a retornar para a vibrante mente de Joon-ho com a tragicomédia sci-fi ‘Mickey 17’.

A trama é centrada em Mickey (Robert Pattinson), um rapaz que se inscreve para trabalhar como um “dispensável” em uma missão espacial que pretende levar a humanidade para um novo planeta. Porém, sem ter plena ciência do que o trabalho exigia, ele é utilizado por um grupo de cientistas para inúmeros experimentos mortais que têm quase 100% de chance de matá-lo – o que não é um problema, visto que ele assinou um termo de responsabilidade e dando aval aos pesquisadores para cloná-lo e trazê-lo de volta à vida, com as memórias das vidas passadas. Ao chegar em sua décima sétima “reencarnação”, ele sobrevive em meio a uma situação inóspita e retorna para a nave-mãe apenas para descobrir que ele já foi reimpresso – e que Mickey 18 está na ativa.

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Entretanto, a existência de dois “dispensáveis” é contra as normas impostas pela missão e, caso isso aconteça, o programa será finalizado e todas as cópias serão destruídas – varrendo qualquer vestígio de que Mickey existiu. A partir daí, o protagonista parte em uma jornada para sobreviver em meio a pessoas que querem que matá-lo. E, para além de fortes performances e uma sólida direção de Joon-ho, o filme se beneficia de temas extremamente importantes e relevantes quando refletidos na atualidade, mas remodelados com uma atmosfera irônica e que utiliza uma imagética bastante específica para entregar as mensagens que pretende.

Logo de cara, o primeiro elemento que mais nos chama a atenção é a própria condição do que significa ser humano em uma sociedade que preza pelo lucro e pela conquista do que pela vida. Em outras palavras, a criação de um “dispensável” não é só força-motriz do enredo, mas reflexo direto de uma problemática que se repete há séculos. Afinal, é notável que, dentro de uma sociedade capitalista, a defesa de grupos conservadores, tradicionalistas e que pertencem ao espectro político de direita é da maximização dos ganhos em detrimento da questão humana. E é a partir disso que conseguimos compreender a posição em que Mickey se encontra.

Homem deitado em equipamento médico azul iluminado

Como explicado no início do filme, o personagem titular estava fugindo de um agiota que estava caçando tanto ele quanto Timo (Steven Yeun), seu suposto melhor amigo. Timo conseguiu um trabalho como piloto, mas Mickey teve que se virar para não morrer e se submeteu à única posição que, de fato, lhe garantiria uma passagem na nave; assim, ele se sujeitou a uma subserviência predatória que o transformou em uma mão de obra muito barata e literalmente descartável, sendo obrigado a participar de experimentos com vírus perigosos, radiações e criaturas animalescas gigantes com o objetivo de garantir a perpetuação da raça humana em um planeta inexplorado, Niflheim.

De certa forma, é possível traçar paralelos entre Mickey, a família desempregada de ‘Parasita’ e os rejeitados de ‘Expresso do Amanhã’. Em ambos os filmes mencionados, há uma clara separação entre classes que representam os proletários e a burguesia, em que esta se autointitula dona dos privilégios e acreditam estarem fazendo um “favor” com aqueles. Afinal, Joon-ho não é nenhum estranho a discorrer sobre a luta de classes em suas produções, incorporando elementos marxistas que denunciam a apropriação de riquezas e de recursos pelas mãos dos mais poderosos. Em ‘Mickey 17’, esse poder fica restrito à propositalmente exagerada ostentação de Kenneth Marshall (Mark Ruffalo), um político demagogo que apenas finge preocupação com os passageiros e a tripulação a bordo da nave; ao lado da esposa ególatra Ylfa (Toni Collette), Kenneth tem planos obscuros para com Niflheim e, tendo instituído o programa dos dispensáveis, os enxerga apenas como meios para um fim.

Mickey 17

Kenneth representa a potencialização não só da supracitada demagogia, mas de uma soberania falha e condenável que não governa para todos, e sim para apenas uma parcela. A construção do personagem, inclusive, rema de encontro à estrutura das obras anteriores do cineasta por não ter asseclas ativos que realizam seu trabalho sujo, recusando-se a esconder por trás de máscaras e terceiros e posando com uma pompa risível como um líder autoritário e impetuoso que não mede esforços para conseguir o que quer.

Enquanto a conturbada relação entre Kenneth e Mickey tem maior destaque, principalmente quando as versões 17 e 18 cruzam caminho e desmantelam a aparente ordem da espaçonave, o personagem encarnado com maestria por Ruffalo também faz parte de uma subtrama que explora o conceito de xenofobia, imperialismo e neocolonização. Ao longo da história do cinema, diversas produções criaram cenários fictícios em que o homem cruzava a imensidão do espaço para descobrir novos planetas; aqui, Niflheim posta-se como uma representação de povos e nações que passaram pelo processo de colonização, principalmente na continuidade da era contemporânea.

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Ao chegarem ao planeta gelado, a tripulação descobre que ele é habitado por criaturas gigantes que são pintadas como temerárias por Kenneth, chamando-os de “rastejadores”. Entretanto, à medida que a história se desenvolve, Mickey percebe que esses supostos monstros são inteligentes e racionais, vivendo em uma sociedade plenamente desenvolvida que não enxerga os invasores como ameaça, e sim como uma praga. E, após um dos rastejadores ser sequestrado e assassinado por Kenneth e seus comparsas, o líder deles constrói um plano de vingança que será colocado em prática para dizimá-los.

Kenneth arquiteta um retrato claro dos rastejadores aos tripulantes de sua espaçonave, transformando-o em inimigos para garantir a ordem e que o medo torne-se ferramenta de manipulação. E, considerando que o antagonista é uma representação mais caricata ainda de Donald Trump, é óbvia a crítica que Joon-ho faz à hegemonia neoimperialista dos Estados Unidos em países de terceiro mundo – em que a ideologia norte-americana firma um bode expiatório em comunidades de terceiro mundo para que o real problema seja acobertado por uma cortina de fumaça.

Lembrando que ‘Mickey 17’ está em exibição nos cinemas nacionais.

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