O próximo campo de batalha da Apple será a sua casa

HomeKit

Depois do cancelamento do projeto do carro, depois do primeiro passo (e do enorme tropeço) do Apple Vision Pro e, com a aparente maturidade das linhas de iPhones, iPads e Macs, era só uma questão de tempo até que surgissem os primeiros sinais de uma tentativa da Apple de identificar uma nova fonte de receita, preferencialmente em um segmento novo, porém familiar (e talvez complementar?) ao resto da sua operação.

Quem costuma acompanhar o detalhamento dos relatórios fiscais da companhia sempre tem uma boa ideia do que esperar: o iPhone é responsável por quase metade do total, serviços costumam corresponder a uns 25%, o iPad e o Mac empatam com aproximadamente 8% cada, e o resto (que costuma ficar por volta dos 10%) fica a cargo da curiosa categoria “Vestíveis, Casa e Acessórios” 1, que chamarei de VCA daqui para frente.

Essa categoria inclui atualmente produtos como o HomePod, o Apple Watch, todas as capinhas, pulseiras, cabos, carregadores, adaptadores, acessórios, periféricos, AirPods, tudo da Beats, os Apple Pencils, a Apple TV, o AirTag, os Siri Remotes e… ah, sim! O Apple Vision Pro também. Zero sentido, mas é o que é.

No trimestre fiscal mais recente, o segmento de VCA faturou aproximadamente 10% dos US$94,9 bilhões totais da Apple. Não foi ruim, mas marcou o quinto trimestre fiscal consecutivo de queda na comparação com o mesmo período no ano anterior (conhecido lá fora pela sigla YoY, que significa year-over-year, ou ano a ano).

Essa, na realidade, foi a única categoria dentre as cinco que a Apple detalha que registrou esse tipo de queda YoY — queda de 3% para ser preciso, em comparação a crescimentos de 2% na receita de Macs, de 6% na receita de iPhones, de 8% na receita de iPads e de saudáveis 12% na categoria de serviços.

É óbvio que a Apple não está em apuros. Longe disso. Porém, do ponto de vista de receita, o ritmo de crescimento parece ter estacionado. Depois de um incrível salto de 54% YoY no segundo trimestre fiscal de 2021, a receita veio caindo até atingir -5% no primeiro trimestre fiscal de 2023. De lá para cá, ela veio flutuando até atingir uma alta de 6% no trimestre passado, o melhor dos últimos oito trimestres.

E é em meio a esse cenário que vêm surgindo cada vez mais indícios de que o próximo alvo da Apple não é a sua garagem, ou a sua cabeça, mas sim sua a sala. E o seu quarto. E a cozinha. E o corredor. Talvez o banheiro.

Com cada vez mais rumores que apontam para uma quantidade crescente de objetos domésticos conectados que a Apple poderá lançar nos próximos anos, uma coisa é certa: quando o assunto é Cupertino, onde há fumaça, há grana.

Ontem

A categoria de tecnologia doméstica (ou domótica, para os íntimos) não é exatamente uma novidade para Apple. Do iPod Hi-Fi ao Apple Pippin, das linhas AirPort à Apple TV e passando pelos HomePods, os investimentos da Apple nesse segmento sempre variaram em abrangência, em relevância e, principalmente, em retorno sobre investimento.

O mesmo acontece com a camada mais estrutural de casa conectada. Em 2014, quando a Apple apresentou o HomeKit, o segmento de IoT 2 era um mar de incompatibilidade. Alguns produtos só funcionavam com a Alexa da Amazon, outros só recebiam comandos a partir do Google Assistente, alguns também funcionavam com a Siri (mas alguns, só por meio de um acessório que fazia uma ponte de conectividade), e nada funcionava direito. Ou entre si.

O problema era ainda maior quando uma mesma casa abrigava usuários de iOS e de Android. Quem viveu sabe. Tenho certeza de que pelo menos um casal deve ter se divorciado em algum lugar do mundo depois que a ação de acender a lâmpada do banheiro parou de funcionar pela milésima vez.

Pois bem. No caso do ecossistema da Apple, o HomeKit resolveu parte desse enrosco. Aos poucos, fabricantes de lâmpadas, câmeras, sensores e outros produtos foram adotando o framework da Maçã para tentar maximizar a compatibilidade entre seus produtos.

A questão é que gigantes como a Amazon, o Google e a Samsung tentaram fazer a mesma coisa, e o mercado rapidamente se embolou novamente. Procurar por soluções de conectividade para objetos de IoT de diferentes fabricantes era o jeito mais eficiente de desperdiçar dias tentando entender a diferença entre protocolos como Zigbee, Z-Wave e Thread, quais eram mais indicados para diferentes frequências de redes, quais eram compatíveis (ou não) entre as diferentes gerações de hubs como Samsung SmartThings e o próprio Apple HomeKit e, de repente, voltar a acender a maldita luz por meio do maldito interruptor não parecia mais uma ideia tão ruim.

Frente a esse cenário insustentável, as principais empresas resolveram se juntar para fazer o óbvio: ao invés de cada uma tentar se tornar a principal solução para um mercado tão fragmentado, e se elas resolvessem concordar com o desenvolvimento de uma camada de software que abrangeria todos esses protocolos e diferentes versões de… tudo? Foi assim que nasceu o CHIP 3. Logo depois, morreu o CHIP; e foi assim que nasceu o Matter.

Hoje

Quando a Amazon, a Apple, o Google, a Samsung e a Zigbee Alliance anunciaram em 2019 que estavam unindo forças para formar o Projeto CHIP, o mercado ligado em IoT deu um suspiro de alívio. O objetivo do grupo seria conquistar duas coisas inéditas: facilitar e baratear o desenvolvimento de produtos de IoT e, ao mesmo tempo, melhorar a compatibilidade entre produtos e protocolos já existentes.

Dada a falta de confiança do mundo nesse mercado, foi impossível não rir quando, em 2021, o grupo anunciou que estava mudando de nome e desenvolvendo um novo padrão, chamado Matter, para cumprir esses objetivos. Nascia a Connectivity Standards Alliance que, por sinal, conta atualmente com mais de 300 empresas parceiras, promotoras ou participantes.

Aos trancos e barrancos e, em meio a atrasos e mudanças de planos que reduziram a retrocompatibilidade com produtos, com protocolos e sistemas mais antigos, o Matter foi lançado em 2022 e de fato tem se tornado uma espécie de língua franca de objetos domésticos conectados, abrangendo desde televisores e ares-condicionados, até tomadas e motores de cortinas.

Ainda há muito a ser feito, é claro, Mas essa simplificação de todo o protocolo tem se traduzido em uma aceleração na adoção de produtos de IoT pelo mundo, com os Estados Unidos naturalmente puxando a fila.

Em 2023, a estimativa é que esse mercado tenha movimentado US$101,07 bilhões globalmente, com uma previsão de US$121,59 bi para 2024 e uma projeção de US$633,2 bi para 2032.

Do lado da Apple, ela vem melhorando e expandindo o suporte do HomeKit e os próprios aplicativos Casa com mais produtos, incluindo câmeras de segurança (com direito a backups criptografados no iCloud para imagens capturadas), roteadores, chaves e o próprio protocolo Matter.

Já do lado dos rumores, temos visto principalmente nas mãos do jornalista Mark Gurman (da Bloomberg) matérias envolvendo o interesse da Apple por produtos que, separadamente, não pareciam fazer tanto sentido no início. Porém, juntos…

Amanhã

Rumores a respeito de um “homeOS” não são exatamente novos. Em 2021, a própria Apple publicou vagas de emprego citando temporariamente o nome desse suposto sistema operacional, obviamente sem dar nenhum outro detalhe a seu respeito.

Já no início de 2024, o nome “homeOS” voltou a pintar em materiais vindos de Cupertino, agora em códigos internos do tvOS 17.4. Àquela altura, já circulavam notícias dando conta de que a Apple pretendia não apenas munir seus produtos domésticos (como a Apple TV e o HomePod) com o “homeOS”, como também expandir a linha, começando com um HomePod munido de uma tela.

Aliás, falando nesse HomePod com tela, o rumor parece ter mudado ao longo do último ano. Nem sempre é fácil diferenciar entre informações desencontradas quando elas são apenas um telefone sem fio sobre um mesmo produto, ou se são informações a respeito de produtos diferentes. Mas atualmente o consenso é que a Apple deva lançar em 2025 um display conectado, talvez munido de uma caixa de som como se fosse um Nest Hub do Google, ou talvez para ser encaixado na parede, como se fosse um Echo Hub da Amazon. Talvez no futuro ele ganhe um braço robótico. Talvez não.

De qualquer modo, esse display, feito para controlar objetos de IoT, rodaria o tal “homeOS” e, no futuro, seria usado para administrar outros produtos domésticos conectados da Apple (e de terceiros), incluindo uma câmera doméstica inteligente e uma campainha inteligente com Face ID — ambas previstas para 2025-26.

Se a Apple realmente decidir lançar esses produtos, é difícil imaginar que ela vá parar por aí. Estrategicamente, esse é um mercado interessante para explorar até mesmo do ponto de vista regulatório, pois, graças ao Matter, todo o ecossistema de IoT poderia ser compatível com os produtos da Apple e com o “homeOS” sem muito esforço por parte da Maçã.

Já do lado dos consumidores, evidentemente há um mercado a ser explorado, considerando a projeção de que o segmento de domótica deva mais do que quintuplicar em faturamento e tamanho ao longo da próxima década. E do lado da tecnologia, evoluções como a de agentes de aprendizado de máquina com aplicações a automação doméstica irão trazer ainda mais interesse e utilidade para o segmento, incluindo a introdução de robôs humanoides domésticos. Isso não vai acontecer amanhã, mas vai acontecer.

Robôs da startup 1X

Eu não sei se consigo imaginar uma situação em que a Apple passe a fabricar e vender suas próprias fitas de LED ou de relês e interruptores inteligentes. Ela própria sempre costuma dizer que só entra em um mercado quando tem algo significativo a acrescentar. Mesmo no caso do Apple Vision Pro que ninguém quis, isso foi verdade do ponto de vista de tecnologia, algo mais desafiador para uma fita de LED.

Por outro lado, eu também não consigo imaginar uma situação em que, já tendo avisado ao mercado com todas as letras que ela dificilmente terá outro produto tão bem-sucedido e tão rentável quanto o iPhone e, vendo o platô de crescimento de todos os seus outros produtos, ela resolva ficar parada. E se de um lado, a categoria de VCA é atualmente a que mais tem deixado a desejar, de outro, isso significa que ela é a que mais tem a oportunidade de crescer.

Notas de rodapé

1    À qual, até o relatório do quarto trimestre fiscal de 2018, ela se referia como “Outros produtos”.
2    Internet of Things, ou internet das coisas.
3    Project Connected Home over IP, ou Projeto Casa Conectada por meio de IP.
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