Clarice Lispector jornalista: como a escritora reinventou a arte de entrevistar

Entre 1968 e 1977, escritora trabalhou como jornalista nas revistas “Manchete” e “Fatos & Fotos”. Livro reúne 83 entrevistas conduzidas por Clarice, 35 delas inéditas, com figuras como Clóvis Bornay e Maysa.Em 1968, Clarice Lispector (1920-1977) foi até o estádio do Botafogo, na rua General Severiano, no Rio de Janeiro, entrevistar o técnico Zagallo (1931-2024). À época, a escritora ucraniana naturalizada brasileira tinha uma coluna na extinta revista Manchete. Lá pelas tantas, a entrevistadora surpreende o entrevistado ao perguntar: “Qual é o santo de sua devoção?”. “Santo Antônio, e o seu?”, devolve o então técnico do Botafogo. “Nos momentos difíceis, me agarro a Santo Antônio, Santa Rita de Cássia e São Judas Tadeu”, responde. O bicampeão do mundo, então, parte para o contra-ataque: “Você está satisfeita como escritora?”. “Não, mas é o que melhor sei fazer”, avalia a autora de obras-primas da literatura nacional como Laços de Família e A Paixão Segundo G.H..

Seis meses depois, Clarice entrevista Tônia Carrero (1922-2018). A certa altura, indaga: “Que é que você mais deseja no mundo, Tônia?”. “Paz”, responde a dama do teatro, antes de acrescentar: “Outra coisa que eu desejo muito é custar bastante a envelhecer”. Dali a pouco, é a atriz quem faz uma pergunta à escritora: “Que é que você tem, Clarice?”. “Não só estou vaga como de inteligência um pouco lenta”, admite a entrevistadora. E justifica: “Não dormi esta noite”. “Que é que você faz quando não dorme?”, Tônia procura saber. “Dou a noite por encerrada, esquento café e tomo”, Clarice dá de ombros, resignada. “Aconselho você a fazer palavras cruzadas e a jogar paciência”, recomenda a atriz, que também sofria de insônia.

Reinventando a entrevista

“Clarice Lispector reinventou a entrevista. Como, aliás, reinventou a crônica, o conto e o romance. Como entrevistadora, era uma espécie de camaleoa: o tom da entrevista mudava dependendo do entrevistado”, afirma Claire Williams, professora de Literatura e Cultura Brasileira da Universidade de Oxford, responsável pela organização, introdução e notas de Clarice Lispector Entrevista (Rocco). “Quando entrevistava amigos, a conversa fluía. Muitas vezes, compartilhava informações pessoais. Os entrevistados se sentiam à vontade para fazer perguntas. Quando tinha pouco ou nada em comum com o entrevistado, o tom era frio e profissional.”

O livro reúne 83 entrevistas, feitas entre 1968, quando Clarice trabalhou na revista Manchete, e 1977, na Fatos & Fotos. Dessas, 35 são inéditas em livro. As entrevistas do carnavalesco Clóvis Bornay, do cirurgião plástico Ivo Pitanguy, da cantora Maysa, da atriz e modelo Elke Maravilha e do padre Oscar Quevedo, entre outras, não constam da edição de 2007, também organizada por Williams.

Cinco personalidades foram entrevistadas mais de uma vez: o pintor Iberê Camargo, o poeta Vinícius de Moraes, a escritora Nélida Piñon e a artista plástica Fayga Ostrower, duas vezes cada um; e o pintor Carlos Scliar, três.

“O maior mérito de Clarice como entrevistadora é o fato de ter sido uma das primeiras no Brasil. Quantas mulheres exerciam tal função? Vamos registrar uma das pioneiras, bem antes dela, a magnífica Eneida. Clarice seguiu essa trilha e abriu caminho para outras gerações. Não teve receio de impor seu estilo”, analisa Teresa Montero, doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e autora de À Procura da Própria Coisa: Uma Biografia de Clarice Lispector (2021), que elege a entrevista com Fernando Sabino como uma de suas favoritas. “Revela muito do ofício de escritor”, diz.

Dos 77 entrevistados do livro (cinco foram entrevistados mais de uma vez), apenas quatro ainda estão vivos: o maestro Isaac Karabtchevsky, a artista plástica Maria Bonomi, o cantor e compositor Chico Buarque e o piloto Emerson Fittipaldi. Prestes a completar 90 anos, Karabtchevsky revela que, a exemplo de Clarice, sua mãe, Genya, também era da Ucrânia – a primeira nasceu em Chechelnyk; a segunda em Kiev, a capital do país.

“Quando abri a porta de casa para receber Clarice, estava revivendo um passado bem familiar. Ela enfatizava os ‘erres’, como minha mãe fazia”, recorda o maestro. “Daquele momento em diante, nos adotamos como irmãos. Somos, Clarice e eu, tenazes e inconformistas. Ou, como ela dizia, tímidos e ousados.”

Se Clarice e Karabtchevsky eram “irmãos”, ela e Bonomi, de 89 anos, são comadres – a escritora é madrinha de batismo de Cássio, filho de Bonomi. Segundo a artista plástica, a entrevista foi 50% presencial e 50% remota – por telefone. “Fomos à praia e, depois, comemos uma pizza no restaurante La Fiorentina, no Leme”, relata.

A entrevista com Maria Bonomi, publicada na revista Fatos & Fotos de junho de 1977, é uma das últimas do livro. Clarice morreu no dia 9 de dezembro daquele ano. “Foi uma coisa terrível. Estou devastada até hoje. Clarice me faz muita falta”, emociona-se. “Nélida [Piñon] e Olga [Borelli] me esconderam o estado de saúde dela. Se eu soubesse que era grave, teria visitado no hospital e me despedido dela. Não me perdoo.”

Chico Buarque tinha 22 anos quando foi entrevistado por Clarice em 1968. A entrevista foi às quatro da tarde porque, às cinco, ele tinha aula com a pianista Wilma Graça. “Todas as mães com filhas em idade de casar consentiriam que casassem com você. De onde vem esse ar de bom rapaz?”, perguntou a escritora. “Clarice tinha mania de encarar você e fazia perguntas diretas. Ela era desconcertante”, define o cantor no livro Clarice na Memória de Outros (Autêntica, 2024). “Clarice tinha esse poder de intimidar as pessoas”. O livro, organizado por Nádia Battella Gotlib, reúne o relato de 57 personalidades, como o cantor Caetano Veloso, a escritora Marina Colassanti e o economista Paulo Gurgel Valente, filho de Clarice.

Qual é a coisa mais importante do mundo?

Três das perguntas feitas a Chico Buarque são recorrentes no repertório de Clarice: “Qual é a coisa mais importante do mundo?”, “Qual é a coisa mais importante para você, como indivíduo?” e “O que é amor?”. Em geral, fazia perguntas inusitadas: “Você acaba um caso porque encontra outra mulher ou porque se cansa da primeira?”, “Recebe muitas cartas e telefonemas de admiradoras alucinadas?” e “No tempo de garoto se julgava um craque ou um perna de pau?”, indagou a Vinícius, Tarcísio Meira e João Saldanha.

“Clarice não seguia regras ou padrões. Fazia as perguntas que ela queria”, analisa Gotlib, professora de Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP). “Por vezes, pedia ao entrevistado para entrevistar a si mesmo.”

Tão surpreendentes quanto as suas perguntas eram as suas divagações: “Fico espantada quando encontro pessoas que leram um livro meu várias vezes”, “Não tenho mais paciência de ler ficção” e “Não sei por que escrevo”, refletiu durante os encontros com Rubem Braga, Tom Jobim e Djanira.

Durante a entrevista com Pedro Bloch, deixou escapar: “Acho que não consegui me realizar como escritora.” Nisso, escutou de seu interlocutor: “Se você diz que não conseguiu se realizar como escritora, sendo a maior escritora do continente, então ninguém se realizou em nada.”

“Seu maior mérito era revelar o inesperado dos entrevistados. Para conseguir tal fato, tinha uma estratégia: se expunha para captar a confiança de seu interlocutor até o ponto de ele se expor também”, analisa Aparecida Maria Nunes, doutora em Letras pela USP.

Em geral, as entrevistas eram feitas no apartamento de Clarice, na rua Gustavo Sampaio, no Leme. Algumas, no entanto, foram realizadas na casa do entrevistado – ou em seu escritório, fazenda ou ateliê. Ou, no caso de Émerson Fittipaldi, durante um voo entre o Rio e São Paulo. “Avião da Varig é mais seguro que carro de corrida”, brincou Clarice, que abordou o piloto na fila de embarque do aeroporto.

Algumas vezes, bebeu água ou tomou café com o entrevistado. Outras, uísque, cerveja e até refresco de mangaba – cortesia do casal Jorge Amado e Zélia Gattai. No fim da entrevista com Elis Regina, ainda ganhou carona até sua casa.

“Não usava gravador. Preferia fazer anotações à mão e, depois, digitá-las em casa”, revela Williams. Entre entrevistar e ser entrevistada, preferia a primeira opção. “Gosto de pedir entrevista: sou curiosa. Detesto dar entrevistas: me deformam”, dizia. “Tinha dificuldade de se expor publicamente”, esclarece Montero.

Em setembro, Cate Blanchett rasgou elogios a Clarice Lispector. Foi durante o Festival de Cinema de San Sebastian, na Espanha. Na ocasião, a atriz australiana chegou a citar um trecho da crônica Diálogo do Desconhecido, extraída do livro A Descoberta do Mundo.

“Mais importante do que o mero aspecto comercial, esse comentário atrairá novos leitores para a obra de Clarice”, prevê seu editor, Pedro Karp Vasquez. “Não se trata de literatura de entretenimento e sim de transformação. O efeito dos seus livros não termina com o fim da leitura. Em muitos casos, começa justamente neste momento, quando as ideias de Clarice ficam trabalhando em nosso íntimo, como um convite para a reavaliação de nosso papel no mundo.”

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