Mais quatro anos de Donald Trump significam mais quatro anos de Tim Cook

Tim Cook e Donald Trump

Na semana passada, eu já estava com boa parte de um texto pronto, antes de o Bluesky ultrapassar a marca de 15 milhões de usuários cadastrados 1 e me motivar a escrever sobre o que isso poderia significar para o mercado cada vez mais amplo de redes derivadas do antigo Twitter.

Originalmente, este artigo tinha a seguinte premissa: com a nova caquistocraia a caminho dos Estados Unidos, quais serão as benesses e os desafios com os quais Tim Cook terá que lidar a partir de 20 de janeiro de 2025?

Se, de um lado, Donald Trump passou toda a sua campanha prometendo uma nova guerra fiscal insustentável com a China para apelar ao ufanismo da parcela mais ingênua do eleitorado, de outro Cook poderia tentar descolar uma nova isenção fiscal, para não ter que aumentar os preços nos EUA ou abrir mão das margens gordas da Apple.

E se de um lado eu já desconfiava que o processo de anticompetitividade do DoJ 2 dos EUA contra a Apple não daria em nada, agora eu tenho certeza. Governos republicanos tendem a ser mais amigáveis a grandes corporações e menos propensos a impor regulações rígidas ou intervenções severas em casos antitrustes.

Aliás, foi essa perspectiva de alívio regulatório que fez o valor dessas empresas subirem temporariamente após a eleição (a maioria já voltou ao patamar pré-eleição, com exceção da Tesla — que vive seu momento de estatal venezuelana), refletindo a expectativa do mercado de que veremos mais cortes de impostos e menos ações do DoJ, da FCC 3 e da FTC 4 pelos próximos quatro anos.

É claro que, no caso de Trump, essa relação tende a ser mais corrupta e menos calcada apenas na versão republicana do livre comércio: Trump não faz questão de esconder (e, na verdade, se esforça para deixar claro) que suas decisões são tomadas na base da ameaça e da vingança, ou então da retribuição a demonstrações de submissão e de lealdade. Motivo pelo qual não só Cook, mas também Jeff Bezos 5, Mark Zuckerberg, Sundar Pichai 6, Satya Nadella e outros CEOs 7 foram rápidos para parabenizar o futuro presidente pela vitória.

Parabéns Presidente Trump pela sua vitória! Estamos ansiosos para nos envolver com você e sua administração para garantir que os Estados Unidos continuem a liderar e sejam alimentados por engenhosidade, inovação e criatividade.

De quebra, como eu explorei aqui, o vice de Trump foi encomendado pela parcela tecnolibertária dos investidores de capital de risco do Vale do Silício, o que aumentou ainda mais o otimismo sobre um favorecimento da concentração de poder e da atuação irrefreada do setor dominante da tecnologia pelos próximos quatro anos.

Para finalizar o texto da semana passada, eu pretendia abordar os aspectos da diversificação das fábricas da Apple para além da China, com ênfase na Índia e no Vietnã (e, em menor grau, no Brasil), e o pouco impacto que a agenda antiambientalista da nova administração deve ter nas iniciativas de responsabilidade ecológica da Apple, já que elas sempre foram fruto de uma proatividade da companhia, sem qualquer relação com o insuficiente mínimo obrigatório por lei nos EUA.

Pois bem. Eis que veio a newsletter semanal de Mark Gurman abordando basicamente todos esses mesmos pontos, e matou o propósito da coisa toda. Eu culpo o Bluesky.

Por outro lado, pensando mais a respeito de todo esse cenário nos últimos dias, eu cheguei à conclusão de que, independentemente do que aconteça, ter Trump no comando dos EUA pelos próximos quatro anos significa, sem dúvidas, ter Cook no comando Apple por pelo menos mais quatro anos também.

Isso, por sinal, vai contra algo que eu vinha defendendo sempre que escrevia sobre Cook. Em mais de uma oportunidade, eu disse que achava que estávamos testemunhando o finalzinho da carreira do executivo como CEO da Apple. Com o Vision Pro no mercado, com o “Projeto Titan” cancelado, e sem novos grandes projetos no horizonte, parecia restar apenas o (atualmente enorme) desafio de passar o bastão com a casa em ordem, algo que eu imaginava que não levaria mais do que dois anos.

Com Trump e seus caprichos de volta à Casa Branca, o cenário mudou. E a ironia aqui é que Cook se provou um exímio diplomata nas relações com Trump durante o primeiro mandato, justamente porque ele já havia passado a primeira parte da sua carreira fazendo exatamente a mesma coisa dentro de casa, equilibrando a personalidade mercurial de Steve Jobs e os interesses de longo prazo das operações da Apple. Essas coisas nem sempre estavam alinhadas, mas Cook sempre deu um jeito de quadrar esse círculo.

Comparando com a era de Jobs e, especialmente ao longo da última década, o papel de CEO de uma empresa de tecnologia do tamanho da Apple mudou completamente. A relação entre tecnologia e política sempre existiu, é claro, mas raramente isso se misturava tanto com os assuntos de conflitos geopolíticos.

Steve Jobs presenteia Dmitry Medvedev com um iPhone 4, durante passagem do ex-presidente russo pelos EUA em 2010.

Mais do que isso, as empresas de tecnologia não costumavam ter um papel tão atuante frente a esses conflitos. Para dar apenas um exemplo: a tensão entre Taiwan e China existe desde pelo menos os anos 1940, mas atualmente uma das principais variáveis desse conflito envolve a TSMC, agora que semicondutores movem o mundo e que ela supre 90% dessa demanda.

A questão do que aconteceria com a TSMC em caso de uma reintegração de Taiwan à China já foi tema de inúmeros artigos, livros e discussões, e não são poucos os profundos conhecedores desse tema que defendem que, se não fosse pela TSMC, a situação atual de Taiwan poderia ser bem diferente.

De volta a Cook, quem acompanha de perto as notícias de bastidores da Apple sabe que não faltaram oportunidades recentes em que ele teve de integrar conselhos governamentais, marcar presença em cúpulas de lideranças mundiais, ou só fazer sala para presidentes de todas as alas do espectro político.

Com um semblante que nunca escondeu diferentes níveis de conforto, Cook sempre entendeu a missão e fez o necessário para proteger os interesses da Apple, mostrando uma habilidade acima da média dos outros CEOs de empresas de tecnologia para equilibrar a diplomacia interna e a externa, sem correr o risco de deixar os pratos caírem de qualquer um dos lados.

Tim Cook e Satya Nadella jantam em Davos com Jair Bolsonaro, o presidente de extrema-direita do Brasil.

Ele era o único CEO de tecnologia que ligava direta e frequentemente para Trump, enquanto outros CEOs usavam intermediários. Ele costurou o acordo de repatriação do dinheiro que a Apple guardava na Irlanda com uma taxação menor do que a proposta inicial. Ele armou o esquema de fabricação do Mac Pro nos EUA apenas para o mercado doméstico, sem precisar afetar a produção para o mercado estrangeiro. Ele fez Trump mudar de ideia em mais de uma ocasião, ao mostrar que algumas das suas ideias acabariam beneficiando concorrentes estrangeiros… a lista segue.

Mais do que isso (e muito mais do que Jobs, segundo o próprio Trump), Cook sempre demonstrou saber que, concordando ou discordando de qualquer situação, o que realmente importa é fazer como Aaron Burr e estar na sala onde as coisas acontecem, em vez de boicotar qualquer tipo de envolvimento, ficando à mercê de jogadas de poder que costumeiramente trazem consigo decisões míopes ou mal informadas.

Atualmente na Apple, não parece haver ninguém que tenha a mesma desenvoltura diplomática para lidar com as minas terrestres surpresas que inevitavelmente virão ao longo dos próximos quatro anos. E mesmo que houvesse, essa pessoa teria de começar do zero o importante trabalho de se impor e ganhar o respeito dos outros envolvidos nesse tipo de negociação, fatores esses que Cook tem de sobra.

Goste ou não do desempenho de Cook à frente da Apple, foi graças ao seu pragmatismo estratégico e diplomático que ele tirou de letra a missão de aquiescer às vaidades de Trump durante a primeira passagem do político por trás da Mesa Resoluta sem permitir que isso realmente afetasse as operações da Apple no exterior 8, e será isso que manterá a companhia nos trilhos ao longo dos próximos quatro anos, independentemente das canetadas que possam vir de Washington. Sorte da Apple.

Notas de rodapé

1    E que aumentaram para 21,5 milhões nos últimos dias.
2    Department of Justice, ou Departamento de Justiça.
3    Federal Communications Commission, ou Comissão Federal de Comunicações.
4    Federal Trade Commission, ou Comissão Federal de Comércio.
5    De olho em contratos da Blue Origin com o governo, algo que obviamente não deverá acontecer enquanto Musk estiver por perto.
6    No caso do processo do DoJ contra o Google, a coisa deve ser mais complicada. Em múltiplas oportunidades durante a campanha, quando perguntado sobre essa investigação, Trump apenas vitimizou-se dizendo que o Google era “muito injusto” com ele. Para bom entendedor…
7    Chief executive officers, ou diretores executivos.
8    Que correspondem a mais da metade do seu faturamento, sendo a China sozinha responsável por 15%.
Adicionar aos favoritos o Link permanente.