Para a geração ansiosa, a solução não é voltar ao passado

Adolescente usando um iPhone

Nos últimos meses, um livro reacendeu a (necessária) discussão a respeito dos riscos que o uso infrene de redes sociais oferece à saúde mental de pessoas mais jovens e, especialmente, de jovens garotas. Falo de “A geração ansiosa: Como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais”, do professor e pesquisador Jonathan Haidt.

Esse é um assunto que já vinha ganhando corpo e atenção nos últimos anos, especialmente para pais de crianças nascidas até mais ou menos o ano 2010. No entanto, a questão explodiu quando, em 2021, a executiva Frances Haugen 1, vazou uma série de documentos ao Wall Street Journal.

Esses documentos comprovavam que a empresa sabia dos efeitos prejudiciais que o Instagram podia oferecer à saúde mental de jovens usuárias, mas que havia optado por manter essas pesquisas e conclusões em segredo 2.

A reação aos vazamentos foi imediata. Das condenações de múltiplas áreas da sociedade a dezenas inquéritos parlamentares envolvendo executivos não só da Meta, mas de outras empresas de redes sociais, o assunto de saúde mental emplacou definitivamente como a questão essencial das redes sociais nos últimos anos.

Foi nesse contexto que, em março de 2024, Haidt lançou o livro que vem se tornando uma espécie de Bíblia de quem já acreditava que as redes sociais são a criptonita da Geração Z e estava em busca de validação.

Para promover o lançamento, o autor deu uma série de entrevistas em veículos e podcasts de tecnologia, a fim de expor a sua tese e de promover a leitura da obra. Minha antipatia foi imediata. A cada conversa, mais certeza eu tinha de que ele havia partido da conclusão de que as redes sociais são algo inerentemente ruim para a saúde mental da Geração Z, e havia feito uma espécie de engenharia reversa em busca de dados e de pesquisas que embasassem esse ponto para que ele pudesse escrever o livro.

Ainda assim, eu decidi ler a obra nessa última semana 3, e cheguei a duas constatações: Haidt certamente escreveu seu livro com sua conclusão já em mente, mas essa conclusão está absolutamente correta e algo precisa ser feito. Já o que é esse algo, é o mistério da nossa geração.

A Grande Reconfiguração

Toda a tese de Haidt se apoia no termo A Grande Reconfiguração (que ele repete à exaustão) para definir a forma como o TikTok, o Instagram, a câmera frontal do iPhone e os filtros de selfies reprogramaram irreversivelmente a forma de pensar e de agir dos jovens.

Segundo Haidt, as redes sociais se aproveitam do fato de o córtex pré-frontal 4 desses jovens ainda não estar totalmente formado, e pulverizam pequenas táticas viciantes ao longo de toda a experiência de uso do app para tornar impossível a atitude de parar de mexer no celular.

Da mesma forma, ele postula (na mosca) que as redes sociais se aproveitam de poderem operar em um mercado majoritariamente sem regras, e que isso gera zero motivação para agir das formas responsáveis que certamente teriam um impacto negativo em seus faturamentos, como por exemplo se certificar de que os jovens realmente têm pelo menos 13 anos (como é a lei na maioria dos países) na hora de criar uma conta.

O problema é que muitas das soluções propostas por Haidt envolvem palavras como “proibir”, ou promovem suas próprias experiências de infância nos anos 1960-70 como a solução ideal do futuro, beirando uma espécie de negacionismo tecnológico. E é aí que a coisa entorta.

Onde a coisa entorta

Talvez uma das maiores ironias de todo o livro esteja em um exemplo perfeitamente inocente que Haidt dá repetidas vezes, em referência a “outros tempos” de infância: a bicicleta. O autor fala sobre como cair da bicicleta costumava ensinar lições importantes, ou que andar de bicicleta pelo bairro era uma forma de aprender a lidar com os desafios de diferentes ambientes.

O problema é que, lá pelos idos dos anos 1870-1920, quando a bicicleta ainda era uma novidade, ela foi acusada de praticamente tudo o que as redes sociais são acusadas hoje em dia, incluindo causar transtornos mentais em jovens, deformar corpos, acabar com o hábito de ler livros ou de ir ao teatro, tornar as mulheres mais promíscuas e viabilizar traições.

Por outro lado, façamos um exercício. Deixe a tecnologia de lado por um momento, e pense em todos os outros setores que tocam a sua vida. Transportes, alimentício, financeiro, setor da educação, da saúde, até mesmo o de substâncias viciantes legalizadas como o do álcool e do cigarro.

Se a porta de um avião se solta no meio do voo, todos os aviões daquele modelo ficam com a atividade suspensa até segunda ordem. Se surge a desconfiança de que um medicamento tenha passado a causar alguma nova reação inesperada, ele é recolhido imediatamente. Se você quer vender bebidas alcoólicas ou cigarros, não pode fazê-lo para jovens de dez anos que declarem apenas “eu tenho idade suficiente”.

Munido de estudos (incluindo os internos da Meta) que comprovam que o vício de determinados jovens em redes sociais já não é mais apenas uma hipótese, Haidt parte para algumas propostas que ele acredita poderem começar a resolver o problema, incluindo proibir o contato com celulares até uma certa idade, proibir o uso de celulares em ambientes escolares, e a obrigatoriedade de comprovar uma idade mínima (que ele propõe que seja elevada para 16 anos) para criar uma conta em uma rede social.

Ao longo de toda a sua tese, Haidt reconhece que as propostas só teriam sucesso se pais, responsáveis, escolas, governos e empresas concordassem com os termos (o que atualmente soa absolutamente inatingível) e, ainda assim, admite que isso prejudicaria grupos de jovens que encontram nas redes sociais um apoio inexistente na vida real, como quando são rejeitados pelos próprios pais ou por pessoas mais próximas, que costumavam ser a rede de apoio na era pré-internet. Solução pouco ideal, não?

Entre acertos (como abordar a forma como as redes sociais permitem a radicalização política de jovens vulneráveis pela carência de uma sensação de pertencimento a uma comunidade) e erros (como ignorar praticamente todos os estudos que contrapõem os pontos que ele apresenta como base da sua tese), existe um fator que, de forma decepcionante, não aparece em nenhum momento no texto: a questão do preparo dos jovens para o mundo digital.

A questão do preparo dos jovens para o mundo digital

Se o livro me ajudou a cristalizar uma opinião, é que já passou da hora de as redes sociais terem de passar pela mesma… inconveniência de todos os outros segmentos e terem de responder pelo impacto que elas próprias causam. Como Haidt diz em um dado momento:

Redes sociais não são sinônimo de internet, smartphones não são sinônimo de desktops ou laptops, Pacman não é World of Warcraft e a versão de 2006 do Facebook não é a versão de 2024 do TikTok.

Obrigar as redes sociais a seguirem regras estabelecidas nos anos 1990 beira o absurdo, e nenhum outro produto ou segmento tão crucial na vida de todos nós está sujeito a regras, leis e determinações tão desatualizadas quanto as redes sociais — que sequer existiam quando as leis foram criadas — têm a sorte 5 de estar.

Entre o cronograma de proibição do acesso ao celular e as dinâmicas de organização do governo, da academia e da sociedade para manter as crianças longe dos perigos das redes sociais, Haidt não considera algo elementar: que tal incluir os próprios jovens na equação?

Conhecimento e informação são as armas mais poderosas que existem. E se, ao invés de simplesmente proibir um jovem de acessar na internet, interagir com o celular ou explorar redes sociais até uma determinada idade, esses jovens passassem a ter acesso a informações na escola e em casa, desde cedo, a respeito de como lidar com essas ferramentas? Afinal, quem lhe soa mais propenso a cair em um golpe de extorsão íntima: alguém que tenha crescido aprendendo a usar redes sociais de uma maneira preparada e bem informada, ou alguém cujo uso livre das redes seja permitido apenas a partir dos 16 anos de idade?

Resumo da ópera

“A geração ansiosa” era um livro inevitável, e foi lançado no momento certo para capitalizar sobre, ironicamente, pessoas vulneráveis ao crescente movimento antirrede social que tem tomado o cenário online nos últimos anos.

Mas isso não significa que as redes não tenham culpa no cartório. Elas passaram as últimas décadas esquivando-se de enormes responsabilidades com o mesmo discurso cansado de “temos orgulho do nosso progresso, e precisamos melhorar; esse é um problema muito difícil de resolver”, e a lista de vítimas nesse meio-tempo só não é maior do que as contas bancárias dos seus CEOs que não fazem nada para mudar a situação.

Infelizmente, Haidt desperdiça a oportunidade de apresentar os contrapontos que ele sabe que existem para a sua tese, enfraquecendo o quanto podemos confiar em seu argumento final. Além de dar uma atenção desproporcional à realidade dos EUA (como quando cita que pais e mães não querem que telefones sejam proibidos em escolas, porque vão querer falar com seus filhos quando houver um tiroteio em massa), Haidt remove completamente da equação o senso de agência que as próprias crianças, subestimadas, têm o potencial de ter.

Eu sinceramente torço para que a “era da terra de ninguém” das redes sociais esteja mais perto do fim do que do seu começo. E não me refiro, neste momento, a qualquer tipo de questão de moderação ou de regulação. Me refiro à responsabilidade e à atenção ao impacto que o mundo digital causa no mundo real, algo que por sinal transcende apenas a Geração Z.

É claro que ninguém deve dar pitaco sobre como deve-se criar os filhos alheios, e a decisão de como ou de quando apresentar as redes sociais cabe apenas aos responsáveis por cada criança. Por outro lado, já passamos da época de achar que as empresas responsáveis pelas redes sociais desenvolverão algum tipo de consciência por conta própria, e de fingir que seja normal que a saúde mental de alguns seja o preço a ser pago pelo acesso gratuito ao Facebook por todos.

Notas de rodapé

1    Na época, diretora de produto na divisão de integridade cívica do Facebook, quando ainda não era Meta.
2    Esses vazamentos, conhecidos como “The Facebook Files”, também abordavam questões como discurso de ódio, tráfico humano, tratamento diferenciado a determinados usuários, desinformação política e violência étnica. Mas abramos uma Caixa de Pandora de cada vez.
3    Confrontar os próprios preconceitos é saudável. Recomendo!
4    Região do cérebro responsável, dentre outras coisas, pelo controle de raciocínio, de impulsividade, de tomada de decisão, e da avaliação de riscos vs. recompensas.
5    E o fruto de bilhões de dólares gastos de lobbying ao longo dos anos.
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